NEIDE
FREIRE – UMA MULHER MAIÚSCULA
Giselda Medeiros
Em
estudo sobre Neide Freire, no livro Ensaios
e Perfis, Dimas Macedo assim se reporta muito acertadamente: “No plano
especificamente cultural e humano, Neide é dotada de personalidade que a distingue
do comum dos mortais. Sabe ser humilde, fraterna, compreensiva e, acima de
tudo, sabe ser simples e não faz alarde jamais de seus conhecimentos, tendo
recebido, recentemente, homenagem da Assembléia Legislativa do Estado, no Dia
Internacional da Mulher. Trata-se, portanto, de nome que honra o Ceará e que
honra a tradição das águas do Salgado e a história de sua cidade natal”. Efetivamente,
não só concordo com o notável crítico literário, como assumo sua postura
judicativa a respeito de Neide Freire, escritora de méritos com dois livros
publicados e muitos outros trabalhos em publicações diversas. Poetisa, soube
florir em versos o sentimento nacionalista, difundindo o amor pela Pátria, quer
em sala de aula, quer nas reuniões literárias, onde pontificava com sua
inteligência.
Raimunda Neide Moreira Freire
nasceu na cidade de Lavras da Mangabeira, sob a fertilidade do Rio Salgado, no dia
23 de maio de 1924. Nascera predestinada a levar aos carentes do saber o seu
conhecimento. Daí, ainda na adolescência, viera com seus pais estudar em
Fortaleza, no Colégio Imaculada Conceição. Tornou-se professora e desempenhou
essa função nas cidades de Ubajara (onde fixou residência durante anos) e,
também, em Ibiapina e Tianguá. Depois bacharelou-se em Teologia, pela Faculdade
Universal de São Paulo. Detém o troféu Monsenhor
Tarciso Melo, outorgado pela Prefeitura de Ubajara (2001).
A professora e teóloga,
entretanto, tinha em si mais um outro ideal: as Letras. Seus conhecimentos e
suas experiências adquiridas pelo passar do tempo levaram-na ao país mágico da
Literatura. Assim, ingressou na Casa de Juvenal Galeno, de cujas atividades
litero-culturais passara a frequentar. Por sua inteligência privilegiada, logo
se destacou entre as mulheres que ali mourejavam, filiando-se à destacada Ala
Feminina da Casa de Juvenal Galeno e a outras entidades, a saber: União
Brasileira de Trovadores (UBT - seção Fortaleza); Academia de Letras Municipais
do Estado do Ceará (ALMECE); Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil
(AJEB-CE); sócia correspondente da Academia Literária Feminina do Rio Grande do
Sul e da Academia Irajaense de Letras (RJ). Foi
Presidente da Ala Feminina da Casa de Juvenal Galeno, no biênio
1992-1994, ocupante da cadeira n° 53, sendo Maria Gonçalves da Rocha Leal a sua
Patrona.
Neide
Freire (seu nome literário) publicou Acendalhas
(crônicas e poemas) e Poemas e Lembranças,
além de muitas publicações em revistas, antologias, jornais. Seu nome é
verbete no Dicionário de Literatura
Cearense; Dicionário de Mulheres;
Ensaios e Perfis; e Cearenses Notáveis.
Infelizmente,
apesar de sua contínua e ferrenha luta, por muitos anos, contra o diabetes,
este acabou vencendo-a. E foi assim que Neide Freire, no dia 10 de maio de
2018, em um dos leitos do Hospital São Raimundo, em Fortaleza/CE, com o consentimento
de Deus, pôs um ponto-final na história de sua vida, deixando seu nome imortalizado
no mundo das letras e no coração dos familiares, dos amigos e dos que a
admiravam.
Um rápido olhar sobre
sua obra
Esta resumida passagem pela
biografia da escritora fez-se necessária para que pudéssemos adentrar a leitura
do seu segundo livro
Poemas e Lembranças, e,
ao fim, deixar algumas impressões. Confesso que ler um livro de Neide Freire
é-me tarefa demais prazerosa, haja vista o embevecimento que nos vem de seu
estilo, da linguagem escorreita, do encadeamento perfeito das ideias, o que faz
com que seu texto flua ininterruptamente, denso e limpo, como as águas de uma
cascata.
Conheci Neide Freire desde as
lides da Ala Feminina da Casa de Juvenal Galeno, pela qual trabalhamos (ela
presidente; eu, vice), durante o período 13 de setembro de 1992 a 13 de setembro de 1996,
época em que reformamos o Estatuto da entidade, renovamos e ampliamos o número
de sócias efetivas, publicamos o 2º volume de Um Livro da Ala, o 4º. e 5º. volumes da série Mulheres do Brasil e retomamos a circulação semestral da revista “Jangada”, após longos trinta e nove
anos de ausência. Retomamos a revista em seu número 19 e a editamos até o
número 36. Neide Freire resgatou, assim, o prestígio da Ala Feminina e, para as
palestras da Casa, convidamos nomes expressivos de diversas entidades
literárias e culturais cearenses.
Ao longo desse tempo em que
trabalhamos em uníssono, pude aquilatar o valor desta mulher, fisicamente
frágil, mas de uma fortaleza espiritual indestrutível. Coerente com seus
princípios, ela sabia exercitar a solidariedade, o amor, a fé, a amizade,
jamais deixando que as vaidades humanas cerceassem sua visão humanisticamente
cristã. A ela, indubitavelmente, cabem estas palavras de Armando Fuentes
Aguirre: “Feliz é o homem que no fim da vida possui apenas o que deu aos
outros”.
Neste seu livro, Poemas e Lembranças, entrelaçam-se harmoniosamente
poesia e prosa, sob a batuta de sua maestrina que, de posse das notas que a
vida lhe pôs ao alcance das mãos, vai compondo suas melodias ao ritmo das
oscilações de tons do cotidiano.
Assim é que, no poema “Rota da
Vida”, podemos vislumbrar uma certa angústia, um tom de desalento expressados
nestes versos:
“Na
sala deserta
o
silêncio é vigia
do
tempo furtivo
das
horas que passam.”
A efemeridade das coisas e da
vida, também, está presente no poema “Transcorrência”, metaforizada na
expressão “disfarce da face”. Vejamos:
“Na
firmeza dos dias
os
anos passam
disfarce
da face
de
coisas extintas,
naufragados
desejos,
segredos,
imaginação.”
O humor também se faz notar neste
Poemas e Lembranças, notadamente em
“Imagem”, ainda que mesclado ao sentimento de tédio:
“Horas alopáticas
horas cinzentas de tédio
que só lembram caixas rotas
onde se guarda remédio
assim vou passando a vida
ao sabor de amargas drogas
que o relógio anuncia
oh, pontualidade marota!
Agora é a hora das pílulas,
mais tarde, é a hora das gotas.”
Quando transita pela prosa, Neide
Freire conserva a mesma desenvoltura. São textos agradáveis, sóbrios, de grande
densidade conteudística. Sobressaem, dentre outros, “Evocação ao Padre Cícero”;
“O Rei Poeta” (belíssimo texto sobre o Rei Davi); “Apresentação do livro Interlúdio do Encantamento, de autoria da
inesquecível poetisa Zênith Feitosa; “Literatura Feminina” e “Amor”, no qual
Neide disserta sobre as várias formas de amor, esse sentimento maior que “põe
melodia” na vida, e sobre o qual asseverou Santo Agostinho: “Não se adentra a
verdade a não ser pelo amor”. Transcrevemos,
aqui, o fechamento do texto de Neide, “O Amor”, que se presta a uma rica
reflexão. Vejamos:
“Concluímos daí não podermos chamar de amor as
aberrações, as mais tristes e enodoantes que se agitam em nossos dias, mesmo
porque, embora alguém tivesse dito que ‘amor é frase que o mundo aclama e
desconhece’, o verdadeiro amor, gêmeo do amor criador e salvador de Deus, tem
seus valores firmados na intemporalidade do espírito e ultrapassa o poder da
morte”.
Considero, portanto, válida e
imprescindível a leitura do livro Poemas
e Lembranças, uma vez que a Autora nos conduz ao exercício do pensamento do
poeta chileno Pablo Neruda, ao asseverar que é preciso recobrar o vínculo com o
distante leitor; é preciso caminhar na escuridão e se encontrar com o coração
do homem, com os olhos da mulher, com os desconhecidos das ruas.
Ao final, deixo expressa a nossa
eterna felicidade por termos convivido com esta Mulher Maiúscula, cuja obra e
retidão de caráter se eternizarão pelas gerações futuras como um sol a
desbravar as madrugadas sangrentas.
(publicado em POLICROMIAS - nº10, p.84-90).
Giselda Medeiros
Poetisa, contista,
ensaísta. Pertence à Academia Cearense de Letras, entre outras. Foi Presidente
Nacional da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil – AJEB
(2002/2006). Obras: Alma Liberta (Poesia); Transparências (Poesia);
Cantos Circunstanciais (Poesia); Tempo das Esperas (Poesia); Sob
Eros e Thanatos (Contos); Crítica Reunida (Ensaios); Ânfora de
Sol (Poesia); e Caminho de Sol (Memórias). Detém vários Prêmios
Literários, entre eles, o “Prêmio Osmundo Pontes de Literatura – Poesia” (1999)
e o “Prêmio Lúcia Fernandes Martins de Poesia”, promovido pela Academia
Cearense de Letras (2008). Em 2002, foi aclamada “Princesa dos Poetas do
Ceará”.