ELEGIA
PÓSTUMA AO MEU AMIGO, POETA JOSÉ TELES.
Ruy Câmara
“Quantos
mistérios se ocultam no ato de morrer?”, indaguei-me na chegada e fiz um gesto
solene ao ver o vate de Bitupitá, meu amigo de todas as horas, José Telles,
deitado com as pálpebras entreabertas sobre um olhar espiritualizado, movendo
apenas os braços e os lábios retorcidos, como se aquela impassividade de
cadáver fosse o último recurso para suportar resignadamente os incômodos das
dores e das suas consequências.
Nenhuma
posição no leito era de conforto, mas a sua consciência parece resistir melhor
ao caos do que o corpo em ruínas, uma ruína que aparentemente era restaurada
pelo silêncio que embotava todos os olhares.
Apesar de
tudo, nosso poeta riu às escâncaras ao ouvir a voz do amigo Carlos Augusto
Viana, que acabara de sentar ao lado: Ah se nesse saco de soro tivesse uma
meiota de whisky! Em seguida sentou-se e pediu a Aninha uma dose de whisky
antes de recitar um trecho de “A Sagração dos Ossos”, uma ode à Ivan Junqueira,
quem por força das circunstâncias dorme em sua tumba no Cemitério do Rio de
Janeiro. Após um breve silêncio a voz trêmula do Carlos Augusto ecoou no
quarto:
Os mortos
sentam-se à mesa, mas sem tocar na comida; ora fartos, já não comem / senão côdeas
de infinito. Quedam-se esquivos, longínquos / como a escutar o estribilho / do
silêncio que desliza / sobre a medula do frio. Sei de mortos que partiram /
quase vivos, entre lírios / outros sei que, sibilinos, furtaram-se às
despedidas.
Eis que o Vate
de Bitupitá arregalou os olhos e disse: Aquilo a que em geral chamamos vida
nada tem de comum, mesmo na mais feliz das suas expressões, como essa outra
banda da vida que agora conheço e que sofro minuto a minuto, segundo a segundo!
Não! Já não há minutos, já não há segundos! O tempo vai desaparecer. É a
eternidade que reina, uma eternidade daninha, feita de mistérios! ”
O calor
causticante das palavras incandescentes do poeta José Telles invadiram o quarto
para apressar a decisão de quem estava prestes a se desvencilhar dos turbilhões
caóticos do mundo opaco em que se encontrava, mas que, por uma razão
indesvelável, ainda parecia rir das próprias agonias, e também dos nossos
olhares ocio¬sos, banhados de zelo, os quais, de tanta comoção, pareciam crispá-lo
de energias rígidas, deprimidas, tanto que me perguntei: “De onde ele retira
forças para enfrentar as turbulências existenciais e o vazio que supomos conter
na alma? Como enfrentar as ameaças alucinantes diante do inexplicável, preso ao
corpo que, mesmo pálido e frágil ainda ousa o prazer de um devaneio?
Para quebrar
o tédio, peguei o celular e disse: “Ouça esse música amigo Telles.” Nos
primeiros acordes percebi que seus sentidos estavam bastante atentos à sintonia
do repertório de Denise Emmer, musicada em elegia ao poeta Ivan Junqueira.
Magdala, Aninha, Carlos Augusto e Eu, vimos que as notas musicais extraídas com
suavidade das mãos delicadas da bela e exímia pianista, agiam sobre o nosso
poeta como um bálsamo benigno, retirado de uma fonte inesgotável de amor, de
cujo poder pacificador superou muitas vezes o da ingestão dos fármacos e das
substâncias alucinógenas para conter suas dores, de cuja sensação de hilaridade
produziria nas próximas horas uma felicidade ébria, absoluta, ou algo mais
poderoso com o qual a vida ganharia uma conotação egocêntrica, em que todos os
esforços só serviriam para acirrar o conflito da desincompatibilização
carne-espírito, obviamente depois de sugerir uma paz enlanguescedora, tão
frágil quanto o fio de vida que se liga às concepções mais tênues de um mundo
incompreensível a um espírito generoso e circunspecto, um espírito duro e manso
que permanecia atenazado na fronteira da existência por um sorriso carregado de
esperanças, a requerer, de um lado, a compreensão dos amigos, e do outro, a
esperada benevolência da morte.
Como nos
velhos tempos em que uma ampola de Whisky inebriava os nossos sonhos, naquele
quarto sufocante o poeta via os amigos inquietos, aflitos, como se cada um
acalantasse o secreto desejo de vê-lo poupado na próxima agonia. Mas, apesar da
náusea, ele permanecia atento a tudo, talvez porque não lhe aprazia chegar à
beatitude por meios artificiais, como a beatitude dos loucos, que recebem uma
calma injetável, de onde eclodem sonhos dantescos, a embriaguez misteriosa, os
ideais sem nexo, até o momento em que são libertados dos sonhos sádicos das
almas acrisoladas por etéreos soníferos, ou pelos mistérios que virão a
possuí-los, como a aurora boreal possui a beleza de si mesma diante do
esplendor de um poema contemplativo que surgirá no momento em que tudo parece
se extinguir.
Nosso poeta
já dormia com as suas glórias, mas no quarto onde a família estava, a noite de
vigília seria longa. Quem o visse preso ao leito de morte, entendia a proibição
surda que o impedia de comentar sobre o quanto é difícil a hora decisiva. Mas
José Telles, um durão-crônico, mantinha-se impávido naquele instante singular,
e parecia retirar da música de Denise Emmer a energia amena de uma prece
benigna que brotara da alma de Ivan Junqueira, como se brotasse de um Ser
majestoso que não cobra servidão aos vencidos no Armagedom.
Como num
passo de lucidez, as alegrias que povoaram repentinamente os seus pensamentos,
se entrelaçaram com as convicções de que é verdadeiramente amado por todos. Sua
¬consciência parecia inundada de recordações e viajava nas asas dos versos
proféticos, acom¬panhando o ritmo harmonioso que invadia seu corpo, palco de
uma luta horrenda, extenuada.
Naqueles
instantes lentos, os acordes finais de Denise Emmer duraram uma eternidade, ao
certo, a categoria mais abrangente da totalidade. “É provável que ele tenha
dito para si mesmo: “Enfim, enfim, eu amei a vida e as musas, e por amá-las
tanto, tornei-me o mais cortejado dentre os poetas idealinos, ou talvez um
dândi sexagenário que, mesmo sofrendo, não posso ignorar o lado doce da vida. ”
Há pouco
recebi a triste notícia. Levantei-me, cravei a unha e arranquei o dia 02 de
junho de 2016 do calendário, para dizer ao nosso poeta, amigo e irmão de todas
as horas:
“Permita uma
despedida poética, meu irmão Telles, se é que tu me escutas o íntimo, já que só
o íntimo é capaz de traduzir a minha melancolia diante da fatalidade, esse
estranho poder que vive a nos contrariar. Como bem dissestes um dia, para
espanto dos amantes do delírio, um bom POETA já tem em vista o seu último verso
quando escreve a primeira estrofe. Portanto, ele pode começar seu poema pelo
fim e trabalhar, quando lhe agradar, em qualquer parte. É, pois, hora de
recomeçar uma nova obra pelo fim, talvez o mais lícito e não menos desejado do
que um poema perfumado de flores exóticas, por onde a tua essência flui com uma
potência misteriosa que se entrecruza com o imperceptível e com o que
aparentemente inexiste aos olhos da ciência e da moral. Não sabemos se é essa espécie
de instinto poético que nos faz considerar que a sede insaciável de viver é o
que nos opõe à morte e ao ignoto.
Seria a
finitude uma suposição, o nada absoluto para onde tudo converge, ou um ponto
onde se perpetua a imortalidade das essências? Ide, meu poeta José Telles,
semeando os teus poemas mais suaves sobre os campos férteis da imortalidade, e
quem sabe, com a tua luz benfazeja e generosa, consiga desvelar para todos nós,
seus amigos e admiradores, o que verdadeiramente se oculta por detrás desse
panorama suprareal que a nossa pobre imaginação não consegue desvelar.
Despeço-me com o coração constrito, repetindo o último poema que recitamos
juntos, numa noite ébria de desassossego no Ideal Clube:
Baixa uma
névoa viscosa / sobre as pálpebras da aurora. / E ali, de pé, sob a estola de
um macabro sacerdote, / sagro estes ossos que, póstumos / recusam-se à própria
sorte, / como a dizer-me nos olhos: a vida é maior que a morte.