UMA
POESIA DESNUDA
A literatura cearense
se enriquece com a chegada de mais uma voz a serviço da Poesia. Trata-se de
Rejane Costa Barros, há muito militante no nosso mundo literário, agora,
estreando em publicação solo.
Pertencente à Academia
Feminina de Letras do Estado do Ceará, à Associação de Jornalistas e Escritoras
do Brasil – AJEB-CE, à União Brasileira de Trovadores – secção Fortaleza, à Ala
Feminina da Casa de Juvenal Galeno, dentre outras, Rejane sempre serviu às
hostes literárias, com sua contribuição valiosa, sua presença constante, seja
participando de coletâneas, antologias, seja participando de concursos
literários, arrebatando muitos deles, inscrevendo, assim, seu nome no mural de
várias entidades culturais.
Agora, ela vem
proporcionar-me a alegria de ler os originais de seu livro e prefaciá-lo.
Atitudes como essa sempre nos deixam felizes, e, ao mesmo tempo, preocupadas.
Feliz, porque, em concedendo-me esse privilégio, demonstra a grande confiança
que deposita em mim, afora a amizade; preocupada, por temer que minhas palavras
possam não atingir as suas expectativas e as dos seus leitores.
Mas, arrimada na
Poesia, tendo-a como suporte, vou buscando, em sua voz, em sua melodia, em seu
encantamento, encontrar na palavra de Rejane Costa Barros a arte de bem
escrever, de saber cantar, com estilo e correção, com leveza e graça, o amor em
sua subjetividade, a paixão na ambiguidade de suas metáforas, a dor na busca
pela superação de seus elementos existencialistas.
É bem verdade que
Rejane sabe que o poeta é um ser especial, sobrevivente mágico, conforme
atestam as palavras de Rabindranath Tagore: “Quando a minha voz se calar com a
morte, meu coração continuará te falando”. Isso porque o poeta reinventa-se a
cada momento, a ele e ao mundo, uma vez que sabe trabalhar com o fio precioso
do sonho, tecendo esperanças no coração do povo, num “ato que é desespero e
apaziguamento. Ousadia e insegurança. Ansiedade e celebração”.
Nesse seu livro, a
poetisa dá testemunho de que traz tatuada em sua alma viageira a fonte de onde
fluem constantemente as águas que a levam, em seu bergantim de sonho, ao reino
da Poesia. É dessas águas que ela retorna grávida de versos com os quais vai
cingir a cabeça do amado, que a espera com sua cítara para a grande festa das
palavras.
“Águas do Tempo” é o
título do livro, em que o sintagma “águas” confere à poetisa uma identificação
existencial tal que quase todas as suas imagens criadoras passam a se fundar nesse
elemento (águas), que, segundo Bachelard, “não é mais o vão destino de um sonho
que não se acaba, mas um destino especial que metamorfoseia incessantemente a
substância do ser”, e confere à obra o devaneio artístico que nos faz
vislumbrar na autora a metaforização dos seus sentimentos, em versos como: “Tenho
chaves no peito que deságuam minhas solidões” (Enigmas); “Mais que as palavras,
darei a ti meu pranto” (Escritura do Corpo); “(...) assim nua / toda me
esvaindo, líquida, / sem fronteiras / sem nenhum limite / como um rio que vai
para o mar” (No Tempo das Diligências); “A vida me cobra viver o momento
presente / e busco oceanos e afluentes, / rochedos, tempestades e contentamento”.
Por sua vez, o “tempo”,
que acompanha as “águas” e que as faz moverem-se constantemente, num balé, algumas
vezes vibrante, outras, impregnado de imagens e sensações de “espinhos cravados
em nós”, é metaforizado pela autora como aquele “que nos define e nos arrasta
em sua eterna errância”. Vejamos alguns versos do poema que dá título ao livro:
“O tempo, esse mago sereno que se fixa num instante de emoção, / invade o mundo
e vigia as sombras cruas’; “o tempo é cravo brotando em quintais / dando cor ao abandono e fibras à fome”; “este
velho guerreiro entremeia velhos hábitos / de imagens enganosas”; “O farto
balanço das águas atrevidas de tuas praias / espia uma nudez e se abisma”).
Extremamente lírica, a
autora vai imergindo dessas águas profundas, onde náufragos sussurram seu canto
melancólico, e chega à tona, com seu alforje repleto de canções para o amado,
num chamamento desesperado (“vem partilhar comigo, o último sonho / fazer em
meu corpo a algazarra infantil / como o voo vespertino das andorinhas”; louca
de paixão (“te dou meus abismos e a lã quente para te acolher. / Faremos uma
festa é certo e haverá uma coroa de espumas, / uma abelha em voo para o amor, /
uma semente a germinar”; com total entrega (“Dei-me a ti somente / e busco,
afoita, este furor em brasa / uma leve astúcia me percorrendo a alma”); plena de
dor (“assim, aponto ao horizonte mirando os pássaros / do meu destino, em
curvas delineadas pela fragilidade / com que o amor nos dilacera a alma,
sangrando / os musgos da nossa existência!”); tomada de saudade (“Tenho saudade
das vezes em que te ofereci o mar, / a chuva, o sol, a tarde, o amor, / saudade
do medo e da alegria, / do riso rasgado na hora maior”).
A
“poética corporal”, expressão com que Octavio Paz se refere ao erotismo, também
está visivelmente impregnada na escritura de Rejane Costa Barros. O forte apelo
ao amado, injetado numa linguagem construída por imagens sensoriais, por
metáforas arrojadas num jogo sinestésico, leva-nos a uma atmosfera, em que a
multiplicidade de significações desperta na consciência do leitor um sopro de
sensualidade, que lhe tange as cordas do coração.
Deliciemo-nos
com a magia, o mistério, o encantamento e a linguagem altamente sensorial desses
versos: “Quando amanhece e o sol rasga o céu em seu nascimento, / penso em ti,
iluminado réu de meu sentimento, / preso, amado, solto, livre, voando entre
meus braços” (Confidências); “Ele pousa em mim trazendo fermento e prazer / faz-me
ardorosas promessas / e assim, entrego-me plena de suor / a recender vinho,
puro das verdes uvas /que fervilham em mim, / tenho na última hora, o ventre
molhado em chuva” (Entre Nós Dois); “Te pressinto o desejo, tuas escamas, / teus
anseios marinhos; / te dou meus abismos e a lã quente para te acolher./ Faremos
uma festa é certo e haverá uma coroa de espumas, / uma abelha em voo para o
amor, / uma semente a germinar.” (Criação); “Desta espera, surgiu a fértil
semente / madura fenda se derramando em verso, / um naufrágio sem origem e sem
pressa / a forma imprecisa de um arco-íris.” (Inquietude); “O sexo numa órbita
fragmentada / diz-me que a urgência é a primeira chama / dessa razão que o
corpo pede e inflama / que a alma geme e se completa”.
Não
poderia deixar de citar um verso, cujo significado exprime toda a carga de
erotismo contida no livro: “sou apenas tua oficina de amor!”, cuja metáfora
“oficina de amor” é elemento determinante na composição de um ambiente propício
ao desenvolvimento da sensualidade, do fazer erótico.
Por
fim, acrescentemos que Rejane Costa Barros encontra, ainda, espaço para tecer
canções aos amigos, isso sem derramamento adjetivista, mas com propriedade, leveza,
gratidão e poesia.
Assim
é “Águas do Tempo”, um livro que, embora estreante, dá provas de que sua autora
sabe utilizar o que aprendeu, ao longo do tempo, sobre disciplina literária, em
benefício do aproveitamento da forma e do conteúdo de sua poesia.
Giselda Medeiros
Da Academia Cearense de Letras
Giselda Medeiros e Rejane Costa Barros