Um manto sobre a
terra
Na
antiga cidade, fechada sobre si mesma por altos e espessos muros de pedra, o
menino cresce como outros meninos que não conhecem a penúria. Nada lhe falta:
nem pão, nem roupa, nem teto, nem mãe, nem pai, nem subida aos montes e nem
correria nos campos que bordeiam a cidade. Amável e amado, faz-se rapaz, sente a
beleza das flores, a harmonia do canto dos pássaros e a graça das meninas que
lhe sorriem.
Um
dia, o rapaz vai à guerra e volta ensimesmado e melancólico. Guarda na memória
as dores que vira e ouvira em longes terras. Para esquecer essas dores ou para
comemorar a vida, o jovem Bernadone, vestido
de veludo, sai com os amigos ao anoitecer, bebe, dança, e volta para casa ao
amanhecer. Vem a cavalo, em passo lento, e talvez porque se sinta farto e bem abrigado,
causa-lhe espanto entrever, na luz avermelhada do sol nascente, as silhuetas escuras de figuras encolhidas,
encostadas umas às outras e coladas às paredes de sua casa. Desce do cavalo e,
pela primeira vez, consegue ouvir o pedido silencioso dos seres desamparados de
Assis. Na noite que parecia igual a todas as outras noites, um rapaz, em gesto
que repercutiria no seu século e nos que viriam depois, desveste-se de seu
próprio manto e com ele cobre o homem que tem frio. Alguns de seus amigos imitam-lhe
o gesto e estendem seus mantos sobre outros homens e mulheres e crianças.
Os
ouvidos do jovem, antes moucos, e seus olhos, antes cegos, ao sofrimento vizinho,
passam a ouvir e a ver a fome, a dor, a vergonha dos irmãos homens e das irmãs
mulheres, dos irmãos velhos e das irmãs crianças que vagam na escuridão das
noites e na claridade dos dias, invisíveis e inaudíveis para os corações
endurecidos das gentes.
E
seu canto de amor a todos os irmãos é tão forte que atravessa séculos, quase
mil anos, e chega a um homem que se despe do próprio nome e assume o nome do poverello de Assisi para convidar a
humanidade a desvestir-se de preconceitos e ostentação, e a estender o manto da paz e da justiça sobre
todos os que sofrem sem amparo sobre a terra.
Angela
Gutiérrez,
Membro da Academia
Cearense de Letras e do Instituto do Ceará