Lustosa
da Costa – muito mais que Jornalista
Giselda Medeiros
Stendhal,
mestre do romance psicológico, diz-nos que “um romance é como um arco de violino.
E o corpo do violino, que ressoa, é a alma do leitor”. Efetivamente, um
não se completa sem o outro e, por isso, é que dizemos, após concluída a
leitura de Vida, Paixão e Morte de Etelvino Soares (São Paulo: Editora
Maltese, 1996), sentirmo-nos, assim, vibrando, os que perlustramos as páginas
plenas de inquietação e serenidade, de realismo e ficção, de amor e ódio,
páginas inesquecíveis desse romance, cujo título traz o cinzel da inteligência
do jornalista Lustosa da Costa; título dado, não “pomposamente”, mas guardando-lhe a sugestiva dimensão emocional.
A
matéria-prima de que se serviu o obreiro foi (re)buscada nos corredores
tortuosos da provinciana Sobral do início do século XX. Com ela em mão,
procurou (re)compor o cenário, que retratasse a sociedade daquela época, em sua evolução dialética, a
caminho da transformação. Caracterizou suas personagens, dando-lhes ações tão
reais que nos é possível senti-las saltar da imobilidade do papel para a
representação concreta. Assim é que no capítulo introdutório “A Execução”,
mesmo ainda sem termos tomado conhecimento de seus protagonistas, eles surgem,
inesperadamente, da obscuridade do passado para o palco do presente, a
encenarem o ato final, diante de nossa perplexidade. Aí dá-se o choque
emocional, e o leitor, ávido pelo esclarecimento do fato, vai, página por página, inteirando-se dos
conflitos e das necessidades das personagens vistas em seus desequilíbrios
sociais e ontológicos.
Na
verdade, o capítulo inicial, apresentando alto teor fotográfico e documental, é
a síntese reveladora do drama vivenciado pelo protagonista, verdadeira saga
humana, na qual a personagem Etelvino Soares demonstra o caráter desafiador e
intimorato de um homem apaixonado pelo jornalismo construtivo e justo. Em
nenhum momento, sob as mais diversas pressões político-sócio-eclesiásticas,
deixou-se corromper. Antes, procurou denunciar o convencionalismo da sociedade,
enfatizando o contraste entre o “ser” e o “aparentar ser”, mesmo correndo
riscos inevitáveis.
Ditas
estas considerações, faz-se necessário, agora, que teçamos alguns comentários
(despretensiosos, é claro), com relação a alguns pontos que nos chamaram à
atenção. Em primeiro lugar, o foco narrativo em terceira pessoa mostra um
narrador onisciente que, no entanto, inclui-se como personagem – e isto apenas
no capítulo inicial – embora disfarçadamente entre parênteses. Entendemos ser
tal procedimento um recurso técnico usado pelo Autor, ou seja, o de intuir no
leitor a veracidade do fato. O narrador acompanhou toda a vida e paixão de
Etelvino, como mero espectador, mas não pôde calar-se diante de sua morte
trágica, que é desfecho do romance. Por essa razão, o caráter documental a que
nos referimos antes. Vejamos: (Enquanto vida tiver, jamais se apagará da
memória dos meus tímpanos fatigados o som daquele urro feroz do moribundo que
depois se vai esvaindo, esvaindo, esvaindo até se converter no doído ganir dum
cachorro atropelado.). Atente-se para a construção do tempo verbal “se vai
esvaindo”, em que a locução apresenta um aspecto durativo da ação expressa pelo
verbo, sem que a ela seja dada uma definição na divisão geral de tempo
presente, passado e futuro. É como se a cena se registrasse num tempo que vai
sempre se prolongando.
Em
segundo lugar, na pele de narrador detalhista, o que se nota através da
multiplicidade de informações, leva-nos o Autor a refletir sobre as condições
da realidade social de um tempo em que a dominação (muito mais intensa que
hoje), das oligarquias corrobora a veracidade deste pensamento do historiador
A. Hauser, com que expressou a vitória do capitalismo industrial: O dinheiro
é a força que domina toda a vida política e privada e (...) todos os direitos
passam a exprimir-se através dele. Tudo, para ser compreendido, tem de se
reduzir a um denominador comum: o dinheiro. E, em terceiro lugar, a
caracterização (a nosso ver) de um romance de costumes com tendências
naturalistas, quando combate, com inabalável urdidura, a Igreja, a Família, a
Justiça, imergindo no mais profundo da miserável condição humana de suas
personagens para daí trazer-nos temas que, mesmo recorrentes, ganham mais
dramaticidade quando tratados pela pena sensível de Lustosa da Costa. Dessa
maneira, ele denuncia, com argúcia, a vaidade, a futilidade, a hipocrisia, a
ambição, a inveja, o adultério, o sexo, enfim, os impulsos antagônicos do ser
humano. E tudo isso apresentando densidade conteudística, fluxo narrativo
emergente, em que sobressai a capacidade de trabalhar as personagens em suas
tramas, o que lhe confere o irrefutável pendor para a narrativa longa.
Digna
de nota é também a coerência da linguagem. Os períodos curtos, em sua grande
maioria, denunciam o equilíbrio do processo criativo do Autor e o seu
compromisso com o leitor, no que concerne ao entendimento da mensagem. Os
diálogos guardam uma aura de autenticidade, reveladora, muitas vezes, do mundo
psicológico de suas personagens. Há aí sátiras, ironias, metamorfoses de
comportamentos ou, simplesmente, o desnudar-se de almas.
Vida,
Paixão e Morte de Etelvino Soares é, pois, a narração de uma luta insana,
quixotesca, em que se digladiam a moral e suas pretensas autoridades, a
oligarquia, o tradicionalismo conservador das famílias de estirpe, o clero, a
política, a justiça, enfim, a comunidade aristocrática sobralense, que se
impõe, dominadora, caricaturizada na personagem Romão Patriolino de
Albuquerque. Do outro lado, a figura de Etelvino, um arraigado jornalista que
nada mais queria senão combater os moinhos da injustiça e da opressão.
Por
fim, fazemos nossas as palavras do inesquecível mestre da crônica, o cearense
Mílton Dias, ao prefaciar “Cartas do Beco”, em que enumera as qualidades de bom
ficcionista, que é Lustosa da Costa: “estilo simples, escorreito, a prosa pura,
enxuta, a que não falta um lirismo contido, o vocabulário rico, sem afetação, a
palavra fácil, a plasticidade, abordando os temas mais vários, os mais graves e
os mais leves com a mesma vibrante espontaneidade”. E, em seguida,
arremata: “o leitor que o conhece tem a impressão de estar a ouvir-lhe a voz”.
Pois é assim mesmo, mestre Mílton. Lendo
Lustosa da Costa, sentimo-lo em cada letra, em cada frase, em cada período, em
cada capítulo, em cada obra, limpo em sua integridade de homem de imprensa, e,
como poucos, a conquistar o aplauso e a simpatia de seu público leitor. O humor
inteligente, o cavalheirismo fazem deste jornalista de largo conceito e
militância um homem perspicaz. Por isso sabe ele que é necessário reinventar
a vida e para tal transpõe a objetividade do fato jornalístico em literatura. Assim ,
o que é ou o que foi produto de um tempo atravessará os espaços da
historicidade do cotidiano e passa a ser arte vertical e transcendente: Ars
longa, vita brevis.
Desse modo, Lustosa, aceitando seu convite,
entramos prazerosamente nesta saga sobralense e gostamos tanto de conviver
com seus protagonistas que difícil é, agora, nossa retirada.
(in CRÍTICA REUNIDA)