O ENCONTRO RECIDIVO
Sabia. Tinha certeza de que tudo iria se repetir. Que vontade de falar, de gritar que ela não lhe desse atenção, que não se deixasse levar pelas aparências, que ouvisse a minha história! Mas não me saía a voz. Tudo estava cinza à minha volta. Vozes e choro. Por que choravam? E por que ninguém detinha o casal que atravessava a sala, rumo ao pátio de saída?!
Vi-o uma única vez no velório de uma amiga. A sala estava quente, e resolvi tomar um pouco de ar lá fora.
– A moça conheceu a defunta?
Volto-me na direção daquela voz masculina, de timbre agradável, dessas a que a gente não resiste, por mais que queira.
– Sim. Éramos amigas. Tão boa! Com um fim tão trágico... Mas, desculpe-me. Nem o conheço e já estou aqui a falar de coisas que talvez nem lhe interessem.
Interrompeu-me mansamente e, com um gesto delicado e amigo, pousou a mão máscula sobre meus ombros, quase enlaçando-me:
– Mário Xavier de Lima, encantado por conhecê-la.
A simples menção àquele nome fez-me estremecer. Não sabia por quê. Não poderia saber, mas tive pressentimentos estranhos.
Quis fugir. Sair dali correndo. Mas, seu braço continuava enlaçando-me, prendendo-me a ele, a uma realidade palpável, crua e sinistra...
– Mas, a moça bonita ainda não me disse seu nome - falou tão sussurrante que pude sentir-lhe o hálito acre.
Não sabia o que dizer. Sua voz entrava-me, anestesiando-me. Quis balbuciar algo. A voz embargada, sufocava-me. Suores. Tremores.
– Vamos, chore, moça. Desabafe a dor da perda de sua amiga.
Não podia chorar. Sem forças, deixei tombar a cabeça sobre o peito musculoso daquele homem, que me sustinha, que me prendia ao seu chão. Acariciava meus cabelos tão ternamente que me recompus, num instante. No entanto, por que o medo? Carinhoso daquele jeito... Não! Não deveria ter medo!
Veio vindo da sala um odor de rosas, e a muda voz da amiga morta: “Cuidado, as aparências enganam!” Sobressaltei-me com aquele pressentimento. Contudo, continuava ali, indefesa, encolhida, como presa abocanhada. Seria tão fácil pedir licença, arrancar-lhe o braço que me prendia e sair! Meu Deus...
– Vejo que melhorou. Agora, pode dizer-me seu nome? - e continuava insistindo - seu nome, querida?
– No... me! No... me!
Sua voz hipnotizava-me. E ele me ia conduzindo. Conduzindo. Para onde? Atravessamos a sala. Minha amiga morta nos acenava seu adeus. E pude ver-lhe as lágrimas luzindo à luz dos círios. Adeus, mas escute, amiga: “As aparências enganam”.
Já não me incomodava aquela advertência. Ia sendo levada, fluida, autômata, à imolação. Só o que me importava, naquele momento, era o braço peludo, musculoso, sustendo-me, cada vez mais forte, mais forte, tão mais forte que me doía.
Onde estava? Nem mais sabia. Sentia, apenas. Sentia um corpo pesado sobre mim. Duas mãos másculas me apertando o pescoço, num misto de força e carícia. E uma boca quente me sussurrando, sugando-me a alma.
– Seu nome? Seu nome?
Dor e prazer misturavam-se em mim como o vento e uma chuva miúda que caía sobre nossos corpos exangues. Seu hálito roçando-me os últimos vestígios de vida. E a voz grossa, entrecortada, borbulhante de prazer.
– Ma... da... le... na. Seu nome é Ma... da... le... na, não é?
Meu nome soou-me como um toque de recolher. Silêncio. Era noite! Uma longa noite para mim.
A sala continuava quente e cinza. Olhei, pela última vez, meu corpo, um chão de rosas, regado pelas lágrimas dos amigos que o velavam. E pude ver, ainda, desaparecendo no final do corredor, uma moça apoiada sobre o peito musculoso daquele homem, que a sustinha, prendendo-a a uma realidade palpável, tão palpável quanto a minha.
E eu sabia. Tinha certeza de que tudo iria se repetir. Seria mais uma outra Madalena!...