domingo, 23 de fevereiro de 2014

REVISITANDO JANEIRO DA ENCARNAÇÃO, DE BATISTA DE LIMA

Janeiro da Encarnação
Giselda Medeiros
                                                                                                   
                Vocação poética de imensurável autenticidade, fiel a conceitos e valores, no que concerne à arte, é o que se depreende de Janeiro da Encarnação {Fortaleza, Edições UNIFOR, 1995), o mais recente livro de Batista de Lima.
              Há no autor um poeta vigilante e um homem percuciente que, juntos, sabem, de momento em momento, mergulhar no mais recôndito do ser, lá em seus silêncios, em suas solidões, em seus êxtases, e retirarem o amálgama para versos fortes, onde a linguagem desencadeia emoções, as mais variadas. A contemplação estética, por si só, extrapola o sentimento, que se fixa na pauta de seus versos.
               Técnica e sensibilidade convergem para a emersão da poética de Batista de Lima, que, falando muito pouco de si mesmo, extravasa-se ante a visão de um mundo, do qual é artista e espectador, dando o testemunho de uma larga experiência, o que contribui para o engrandecimento de sua bagagem poética. Que seria do homem sem essa experiência?
               Neste livro, o autor mostra-se um hábil manuseador do verso livre, tão quanto exímio na síntese final de seus poemas, como atestam estes versos de “Poesia”: É  ovo / e vôo / antes da ave.
               Atente-se também ao fato de que o poeta sabe, com acuidade, expressar uma avassaladora torrente de imagens, como em “Canavial II, em que a descrição cede à visualização de uma verdadeira aquarela de palavras: Verde mar de morte / o canavial se estende / calmaria / e os homens encalham / navios sem vela / no massapê massacre.
               Revezam-se, do início ao fim do livro, os mundos submersos de Batista de Lima. Ora é o menino salgado que se rasgou em pedaços, ora é o crítico que não se intimida em lançar seu grito contra a opressão: Aproveito que o ditador morre/ e choro com todos os direitos. Ora é o lírico, resvalando para o cotidiano, mas sempre fiel à sua predestinação poética, em vôos de beleza e sabedoria: O que mais dói na solidão / é ter na mão uma chave / que nada abre / que nada abre . Outras vezes é o saudosista, a relembrar Chapéu do meu avô, Festa de São Sebastião e Festas de Janeiro. Aí, o autor se veste de fina ironia, como nos mostram os versos: Coitadinho do santo /sangrando inocente / no seu medo e pranto / vai triste e temente / de perder seu assento. O erótico também está presente no seu universo poético, como atestam estes versos de “Confissão II”: Sei das estradas e veredas / dos socavões e cachoeiras / das sombrias florestas / até dos vales úmidos / que suas dunas escondem.
                        Outros recursos estilísticos de que se serve o poeta são, notadamente, o uso das aliterações, em abundância, das justaposições de palavras, das repetições, das alegorias e sinestesias, das antíteses, das imagens, que nos chegam como um jorro inextinguível de sensibilidade e beleza, impulsionadas por uma cadeia sintática de palavras que se atraem   foneticamente e se dispersam no espaço imagético das idéias em sua marcha nupcial. Além disso, a supressão premeditada da pontuação deixa o leitor mais à vontade para o entendimento e, conseqüentemente, para a interpretação da riqueza conteudística do poeta.
                        Há muito mais que se dizer deste livro. Contudo, deixo ao leitor as outras observações, que sei, depois de lerem-no, não as poderão calar.

                        De parabéns, pois, a poesia cearense, por esse fruto saborosamente sazonado em pleno esplendor deste Janeiro da Encarnação.
(Do livro Crítica Reunida)