Jorge,
essa esperança, que pões nos braços dos meus combalidos sonhos, é uma
embarcação embriagada que se esqueceu do porto de chegada. Antevejo-me chegando
por aí e encontrando Murilíssimo ao lado de Deus e tu latejando épico do lado
esquerdo divino. Por aqui não está fácil plantar jardins além da dor, nem
contar estrelas verdes que se banham no leite profundo que do sonho emerge. Dos
porões dos teus versos uma capoeira trescala mitos entre a água do açude e o
fogo da fornalha em que se enterram sete lastros de perguntas.
Alagado
de Alagoas, mergulhaste no Rio, criando peles para um mundo órfão de texto e
teto, quase incurável de incertezas. Nesta manhã umbrosa em que te escrevo, um
sol apodrecido borra as margens que a aurora fluviou. E teus pés amarrados de
certitudes e certidões não torcicolaram as atitudes. Por isso que, no calor do
dia, interrogavas por que, maduros pelos dias, cambitávamos o sol e o sal da
terra que nos viu ver a vez primeira. É que no profundo das coisas, coisas
outras se erguem em pedidos de socorro, querendo a palavra teto, carapaça
protetora para enfrentar o mundo.
É,
de Lima, teus cantos doem, corroem e limam nossos nós. Tu vês que no grande ser
profundo, a musa intacta dorme e muita coisa palustre e bela mostra sua garupa.
Basta, pois, de tocares a campainha, se não queres ingresso na choupana do
simples. Sou feito de palavras ancestrais que se vitimam diante de teu
arcabouço de novos signos. Naquela terra que me viu brotar, os cavalos
adivinham as chuvas, os galos marcam as horas e os sapos festejam as chuvas.
Por isso que, se nesses verbos, de mim sinto falta, culpo teu estro que me
manda suspender a frase e engolir a fala.
És
inúmero em encantamentos, poeta. Esse despir-se das coisas te fez ilha, onde um
copo de água te faz marinheiro num veleiro sem velas. Do teu peito de cordas,
plangem as epopeias de um passado desenterrado. Não é fácil fluviar entre
cardumes de mitos, por isso perco meus braços com o peso dos teus manuscritos. Afinal,
nas águas que sobraças, dançam peixes devassados. Nas águas que te verbam tudo
é lícito e sagrado. Nas águas que salitras, tudo redura de retornos.
Prezado
esculápio, tua febre felpuda, toda vestida de tardes, é a mão pesada de Orfeu
em delação de coisas findas. Por isso que nessas horas despencadas, abrimos
nossos bolsos de condutas e liberamos as musas que acabamos por matá-las. Mesmo
assim serás dia onde a noite for reinar, pois teus versos não se abatem onde há
trevas, nem têm medo da carranca das lonjuras. Por isso que dorme e sonha, no
dentro escuro do teu poema, uma vertigem de longo sono, amarrada no silêncio do
semblante. Quando lambes a placenta do signo, um cavalo, todo feito de léguas,
interpreta, lendo comigo os teus versos. Daí que são fiéis as palavras e as
dores que me ligam a ti.
Estimado
vate, também gosto da hospitalidade da poesia, com seus mares de símbolos
latentes, neste mundo de aconteceres procelosos. Enquanto a grande noite não me
golfar de sombras e terrores, vou por aqui roendo tua poesia pelas beiradas do
verso. Se a noite e a floresta se deitam juntas nos teus versos é porque os
soluços da treva procuram falar pela garganta das coisas. Acho culminante
quando, do âmago do nada, extrais cordilheiras para o leitor escalar sem freios.
Acontece que também há momentos em que teu verso é tão amargo que espanta os
passarinhos que no estômago guardamos.
Senhor
menestrel das figurações, plantaste eternidades nos teus roçados verbais, e
agora colhemos os frutos, fora aqueles bicados por incertezas que perdemos
tragados pela pressa. Na união dos teus palmares, aquele cordão que te ligou à
mãe por lá te espera ligando o céu à terra. Quanto aos ocasos, por lá eles
vagueiam pelas asas dos insetos. Lá uma noite perdida sai vagando montanha acima,
gritando teu nome e repetindo teus versos. Tuas imagens e melodias dançando
entre o épico e o lírico vão pintando este Brasil de caboclo de mãe Chica e pai
João. Por isso, ao tentar atravessar esse caudaloso rio de imagens que criaste,
quase me afogo no meio dessa multidão de mitos e metáforas que inventaste.
Querido
amigo Jorge de Lima, assim como os generais, também foste partido quando
partiste. Agora as raízes das tuas terras perderam a rega que teu gênio
alumiava. E enquanto teus olhos me espiam tristes pelas frechas das oitavas,
ainda rastejo rascunhando meus quartetos coxos e canhotos. Assim, as palavras
me devolvem seus silêncios, todas rouquenhas de por ti tão possuídas. Portanto vou agora olhar a lua no seu banho
sobre as águas, enquanto as palavras descansam como noivas depois que se lançam
no teu colo. Enquanto isso, vou amando as pessoas e utilizando as coisas que
nos enganam com seus pelos. Agora que o sol se põe triste em despedida, quero
te dizer que se um dia perguntarem pela floração do meu plantio de símbolos,
vou dizer que foi por teres inventado as sementes que plantei.
Batista de Lima
jbatista@unifor.br