Não é a primeira vez
que abordo esse assunto, mas resolvi retomá-lo depois de uma conversa que tive
há algum tempo com o amigo e poeta Jorge Tufic, oportunidade em que ele me revelou não concordar com o
costume, que grassa em nossa imprensa, de se dizer, ao falar de uma mulher que
faz versos, tratar-se de “uma poeta”.
Sinésio Cabral, em trabalho de 199l, 1 após lembrar que, em
Antenor Nascentes, em Silveira Bueno e na Delta Larousse (e eu acrescentaria
Caldas Aulete e Koogan-Houaiss), encontra-se poetisa como feminino de poeta,
adverte que em latim temos poeta (poeta) e poetria (poetisa); em francês, poète
e poétesse; como, em inglês, poet e poetess. Ao que eu acrescento, em espanhol,
poeta e poetisa; em italiano, poeta e poetessa e, em alemão, Dichter e
Dichterin.
No mesmo trabalho,
cita Sinésio Cabral o poeta e crítico Péricles Eugênio da Silva Ramos, o qual
considerava Francisca Júlia “talvez o mais característico dos poetas
parnasianos do Brasil”, dizendo em seguida que “a poetisa professou a arte pela
arte”. 2
E observa o ensaísta
cearense: “Trata-se, aqui, do emprego correto de poetas (a poetisa entre
poetas) e de poetisa (feminino de poeta).” 3
José Peixoto Júnior,
escritor cearense radicado em Brasília, em texto publicado numa revista
dirigida por Nilto Maciel, ao referir-se a poeta e poetisa, assinalou: “O uso
dos dois epítetos nunca arranhou a igualdade reinante no seio do poetismo;
jamais limitou o espaço a ‘quantos bebem a água do Parnaso’; entretanto,
insinuam o enquadramento do substantivo poeta na classificação morfológica do
grupo ‘comum de dois’, submetendo-o ao vexame de ver-se antecedido por forma
articular feminina na determinação daquela que verseja, denominando-a de ‘a
poeta’.” O mesmo ensaísta sugere que o vocábulo poetisa “deve ter surgido nos
estertores do Iluminismo”. 4
O filólogo
conterrâneo José Alves Fernandes me apresentou o único exemplo que vi, fora de
nosso tempo, do emprego de poeta com referência a uma mulher. É do século XVII,
e diz: “No fim de todas elas (...) vem hua natural de Saxônia chamada Rosuvides
estremada na língua Latina & Grega, & Poeta laureada da qual diz
Arnoldo (...) que foi admirável assi na prosa, como no verso.” 5
É o caso de se
imaginar o que, em nossos dias, teria levado alguns a substituir poetisa pelo
equivalente masculino, tratando embora de mulher. Terá sido a palavra
desgastada pela produção de tantas versejadoras sem mérito, ao longo dos anos?
Não, esse argumento não procede, se pensarmos no número imenso de homens
escrevendo maus poemas no Brasil, ontem, hoje e certamente amanhã...
Embora continue
julgando ser poetisa o feminino legítimo de poeta, como juíza o é de juiz, ou
pintora de pintor, ainda admito que alguém se refira a uma autora de poemas
chamando-a de poeta, mas desde que seja respeitado o gênero do vocábulo.
Cecília Meireles, em
“Motivo”, disse: “Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta.” Lendo este
último verso, não podemos ter certeza quanto ao fato de a autora de Viagem
aceitar a forma feminina “a poeta” (que me parece antiestética), mas, se me é
lícita a lembrança de um testemunho oral, contou-me o saudoso escritor Edigar
de Alencar que, ao perguntar a Cecília Meireles se ela havia escrito algum
poema humorístico, teve dela esta resposta: “ – Eu sou um poeta elegíaco!”
Note-se que a escritora disse “um poeta”, e não “uma poeta”.
Curioso constatar que só acontece esse atentado à gramática
com o vocábulo poeta. Ninguém diz que a atriz Cacilda Becker foi “uma ator”, ou
que a pintora Tarsila do Amaral foi “uma pintor”, o que equivaleria
rigorosamente a “uma poeta”...
José Veríssimo, tratando de Júlia Cortines, afirmou, no
começo do século XX: “esta poetisa é um poeta tão bom como nossos melhores”. 6
Claro que o crítico usou poeta para generalizar, tanto que o estudo se intitula
“Uma poetisa e dois poetas”, pois fala também de Cruz e Sousa e de Luís
Guimarães Filho.
Bem outro é o caso de
Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) que, no estudo “Uma poetisa poeta”,
datado de 1920, comentando a escassez do trabalho cultural das mulheres (as
quais, para ele, “não se distinguem (...) por uma produção satisfatória e nem
mesmo apreciável”), conclui o trabalho com esta frase: “A Sra. Maria Eugênia
Celso não é uma poetisa, é um poeta, mas de alma profundamente feminina.” 7
Parece-me estar nessa
visão preconceituosa (e machista) a origem da aversão de alguns ao vocábulo
poetisa. E ainda assim o crítico respeitou a gramática, pois não escreveu “uma
poeta”...
Sirva-me de consolo a leitura de uma poetisa atual, que
assume de maneira forte e bela sua condição de mulher que faz versos; trata-se
de Elisabeth Veiga, que escreveu um poema intitulado, justamente, “Poetisa”:
Ponho a palavra batom no papel
-- palavra de carne
como o beijo é
vermelho.
Ponho a palavra rímel
e os olhos se fecham
sob mel negro
dessa tinta alerta,
e o poema se entrega
entre teus dedos,
observa
o ócio com que o
folheias:
se tivesse pétalas
voava
suicida, de volta para
o vidro de perfume.
Mas o silêncio da
rosa
é perfeito
quando é só:
rosa – eternidade na
mesa.
Mas ponho a palavra
terra.
Sou origem.
Poetisa. Não poeta. 8
(da Academia Cearense de Letras)