terça-feira, 8 de setembro de 2020

O LEGADO POÉTICO DE GISELDA MEDEIROS - NEIDE AZEVEDO



O LEGADO POÉTICO DE GISELDA MEDEIROS

A poesia é mistério, solidão e descoberta. Presente em qualquer aurora, ela nos arrebata, prende, fascina. Conosco voa, plana, ou esconde-se. Nos cantos mais sutis das nossas almas, ou até mesmo numa porta fatigada de esperas. Estampa-se no sorriso do vento, na insensatez do tempo ou nos confins dos nossos braços cheios de abraços.

Assim, envolta na túnica do sonho, testemunha da saudade, da dor ou do recolhimento, Giselda Medeiros lega à sua imensa legião de leitores, essa obra de singular beleza, onde tudo converge ao essencial. Incrustada numa ânfora morna de sol; pronta aos nossos olhos ávidos de sabê-la.

Afirma Voltaire que o esplendor da relva só pode mesmo ser percebido pelo poeta. Os outros pisam nela.

Pelo prisma de sua farta imaginação poética, a escritora intui a filigrana da metáfora, transformando o que poder-se-ia tomar como lugar comum, numa cortina aberta às conjecturas, certezas, solidões, esperanças, silêncios e caminhos. Esses, por vezes tortuosos, inalcançáveis, vazios...

Há muito estou aqui / no meio deste tempo sem história / cansa-me procurar a saída / nesses vales úmidos de espanto”. Ante a indefinição, o medo, o inconcluso, só resta à poeta adormecer. Para quem sabe, achar uma saída... E, nessa sublimação, exclama: “Adormecer, adormecer – é o que me resta, / para sonhar com tuas mãos se abrindo em flores”.

No poema visões a simbiose da escritora com o eu lírico forma-se em movimentos alternados de aproximação e distância. Isso, Giselda mostra num percurso solitário e indiviso, compondo em miragens uma fragilidade infinda: “Há pássaros engaiolados em teus olhos / nos meus há liberdade de nuvens em travessia”. “Tudo em ti é mito; / tudo em mim é poesia / tuas mãos não derramam brindes; / minhas mãos derramam estrelas”.

Já em nuvem de sândalo a poeta canta o canto inaugural das tardes, prometendo ao amado seu cálido perfume de mulher. Aqui, o erotismo é sutil; posto sabermos que sua poesia jamais tombará sob o peso do grotesco. “Eu serei para ti a amada e a amante. / descerei ao pomar de teus anseios, / feito fruta colhida entre tuas heras”.

Há beleza em tudo que se move; Ânfora de Sol é beleza em movimento. “O ardente desejo de amanhecer-me aurora / cresce, expande-se, alastra-se em vigílias, / enquanto só a melancolia amanhece em minhas pálpebras.

Giselda Medeiros é multifacetada em versos. E sua poesia é indissociável do canto, da dança, da cor e do lamento: “tu cantas, poeta, / a amargura da vida / com a mesma singeleza com que choras / o amor sonhado, encravado nas estrelas”. “Para ti / a nota o ritmo / na simbiose da canção / de amor que cantas”. “ah, deixem-me cantar minha canção / na dor silenciosa dos espinhos, / porquanto a aurora ainda é paisagem em mim!”

Ânfora de Sol é tudo isso. A reflexão existencial sobre o amor e seus contornos. A memória percorrendo lenta as sendas do impreciso. Ou a explosão da luz totalizando os êxtases!

Giselda Medeiros seguirá, certamente, o seu caminho; encantada e conclusiva sobre a pujança de se saber poeta. Nós, seus leitores, inclinamo-nos reverentes ao seu verso.

 Neide Azevedo Lopes.


segunda-feira, 17 de agosto de 2020

ENSAIO DO POETA DIEGO MENDES SOUSA

 CARLOS NEJAR E AS COPAS ALTAS DO ABSOLUTO





O poema-livro A árvore de Deus (Edições Húmus, 2020), de Carlos Nejar, recém lançado em Portugal, é um lenitivo lírico com palavras de esperança e de fé. 

A força bíblica dos versos de Carlos Nejar lembra uma passagem do texto de Gênesis“Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente.”.

As copas altas do Absoluto arvoram as iluminações e os incêndios inventivos de Carlos Nejar e disseminam os seus luzeiros de imagens sobre a beleza, a sabedoria e a eternidade.

O último verso do opus é de uma lucidez avassaladora: “Eu me movo em Deus.”. 
Poeta maior e ficcionista incomum, Carlos Nejar está a comemorar sessenta anos de intensa produção literária neste ano redondo, enigmático e sofrido de dois mil e vinte.

É um Escritor de largueza imaginativa e de genialidade de linguagem tão necessária ao atemporal e aos dias trágicos, que hoje testemunhamos alarmados.

Carlos Nejar é demiurgo iluminado. Diz ele: “Sou árvore de Deus / E o amor cria pássaros.”. Sua poesia nos contamina com uma aceleração rítmica libertadora: “A memória é para dentro, como / a locomotiva que volta / por um túnel à estação. / E o esquecimento / é para fora, igual / a um canteiro / de urtigas.”.

A árvore de Deus é uma celebração à luz, que versa sobre a operação da bondade do Criador para com os seus filhos. São símbolos puros, espécies de escudos onde o poeta recria a ferocidade dos seus abismos, das suas pedras infinitas e dos seus absurdos: “O que é livre em nós / não se dissipa. / O que é livre / levanta os vivos.”.

João, em seus versículos, alude a Deus o nascimento da própria palavra: “No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus e era Deus.”. Já Carlos Nejar, profeticamente nos revela: “Caminho em Deus / E as palavras brilham. / Deus caminha / em Deus. / E só tenho palavras / para os vivos. / Os mortos já desaprenderam todas. // E sou louco de Deus e não / posso mudar de loucura.”.

Essa insanidade é provocação ao translúcido. O vate é um mago que conhece a íntima voragem de tudo. O bardo sai a perfurar a mísera condição do ser humano: “Sou um fruto consumado / no espírito.”.

Seduzidos pelo canto de claridade de Carlos Nejar, vamos a fulminar a realidade. É cruel sim a existência, até nos depararmos com as suas sentenças extraordinárias: “A vida, sem repararmos, / enlouquece e quer ter vogais / ressoando entre os jacintos. / Mais ainda é a imaginação / que embobece / de tanto ver.”.

Há um trecho nas escrituras sagradas que esclarece: “Cada palavra de Deus é comprovadamente pura; Ele é um escudo para quem Nele se refugia.”.

A dicção de Carlos Nejar reside no deslumbramento. São inúmeros os signos que se revestem em grandeza discursiva: “Mas a luz não enlouquece / nunca, sensata percebe / a longevidade da infância / e tudo cessa com o descer / do orvalho nas romãs.”.

A poesia de Carlos Nejar se hospeda na tônica da santidade anímica. É um metafísico coberto pelos sentidos divinos. Sua Literatura é absinto e sofreguidão, com a velocidade das decifrações reluzentes.

As maiores sementes neste belo poema de Carlos Nejar são o Amor e a sua devoção a Deus: “Ó Deus, há tanto amor, / a ponto de não carecer de nome / o amor. Já saí de mim / como a borboleta / do casulo saiu no voo.”.

Com galhos fartos, A árvore de Deus traduz o Inefável, com a reverência de um servo do Absoluto que se abastece nos frutíferos ramos do Senhor: “Não estranhes a minha loucura, / é de Deus. / E este livro caiu dentro / de Deus.”.

Esta obra está repleta de ensinamentos, possui língua própria e é 
um relicário do céu, com os matizes fonéticos do universo. 
Uma canção extasiada e redentora.



*Diego Mendes Sousa é poeta piauiense e filiado à 
linhagem inaugural do poeta gaúcho Carlos Nejar. 



Carlos Nejar / Foto: Reprodução



FRAGMENTOS DO POEMA-LIVRO DE CARLOS NEJAR
ESCOLHIDOS POR DIEGO MENDES SOUSA



Louco de Deus.
Deixo-me levar
como um navio. E foi Ele
que me descobriu. Sou árvore
de Deus.

O Absoluto
me engole, o Absoluto não tem
fome nas costas. Choro de Deus
como fonte, choro da fonte
em Deus.


(...)


A alma é árvore e não acabo.
O silêncio, alarme falso
da morte. E não sei mais
morrer: Deus me ensinou.


(...)


Deus sabe não parar,
sabe ser Deus e nós
humanos
não suportamos.

Por isso engulo o Absoluto,
para saber de ir subindo,
como as garatujas na página
e os números à margem.
E não entendo nada
que não seja amor.


(...)


Não, nunca quis inventar calendários,
para não inventar o fim, a escuridão.
E a morte se inventa a si mesma,
não importa de que parte.
Só sabe inventar e sumir.

Conheci um astrônomo
que ficou preso
na ponta de um mapa.
E viu a morte e escapou
montado num caranguejo.


(...)


E sou como a formiga andando
Andando no galho da eternidade.

Não precisei mudar de nome, fui
sendo engolido de Deus, onde
não serve nome. E Deus é tal,
que a tudo absorve. E dentro
Dele o que me turba?
Soletro a luz por dentro,
letra a letra e a santidade
é não enlouquecer
de tamanha claridade.


(...)


E tenho bosque atrás da alma,
onde pousam passarinhos.
Deus não aclama a beleza,
mas a beleza que aclama Deus.
Escrevo quando o espírito adormece.
Ao acordar, não preciso das palavras.


(...)


E a poesia é o nada
que acordou.
E não tem mais
língua tem o som
da alma para fora.


(...)


Viver é para dentro,
que o fora não alcança.
E o ouvido da alma
só escuta o que Deus
sussurra. E alma tem
ouvido de passarinho
e é ouvido que não voa.


(...)


Tudo o que sai de mim
está vivo.
Minha energia
civiliza os sonhos.

Apenas voa o que tem vida
dentro. E somente se traduz
o que já sonhou.

Não tenho piedade do passado
e ele nunca terá piedade
de mim e nem preciso.
Mas o futuro
é a saudade
começada.


Diego Mendes Sousa e Carlos Nejar/Foto: Reprodução

(in: Domingo com Poesia - "O melhor conteúdo sobre Literatura").