Crônica artesanal
Já eram boas seis horas da tarde quando, enfim, atingimos a fazenda Gameleira
com os raios solares esbatendo-se anunciando a hora das Trindades.
Urubus, pousados nos sabiás do curral, crocitavam agoureiramente provocando
cósmico pavor nos caboclos acocorados no pátio da casa-grande.
Encolhidos, encostados uns aos outros, cosiam-se às paredes chãs, enquanto
ruminavam cenas prosaicas do dia, forjicavam projetos, profetizavam o tempo e
narravam delongadas histórias fantásticas cheias de assombração. Com o barulho
do motor, estorceram a vista em direção ao carro.
No pátio, assomavam imponentes pindobas, ainda verdes, bordeando o grande
terreiro, em contraste com a aspereza da paisagem seca, esturricada, sedenta de
chuva. Desolação.
O sol ia celeremente quebrando; ao longe, as rolinhas turturinavam e os
marrecos rentes à lagoa quase seca grasnavam na claridade incerta que aos
poucos se esgarçava. Ouviam-se distantes e lamuriosos os últimos mugidos do
gado magro, ripado pelas costelas, de orelhas mosqueadas, entristecendo mais
ainda a paisagem esturricada. As sombras das mangueiras aos poucos se avultavam
tisnando a claridade evanescente. Escutavam-se o zizir das cigarras e o barulho
infernal de um bando de pássaros retardatários voando apressados em busca de
abrigo.
Na alcova, uma senhora de meia-idade, de estatura mediana, limpava o sarrento
cachimbo sob a luz crua de um singelo candeeiro. O reflexo do fogo vermelho da
trempe alongava-se pela cozinha, cintilando nos rostos macerados das comadres,
que escrutavam a vida alheia. Pela telha vã, a luz refrangida da lua penetrava
indiscreta, alvíssima, caleando as paredes.
Com as almas já pacificadas, as mulheres, tocadas de ternura, debulhavam o
terço, enquanto os homens, sentindo-se a salvo dos pavores crepusculares,
espaireciam a tristura bebendo a branquinha à larga agora com histórias jocosas
e lascivas.
Lançamos um olhar largo em volta e nos recolhemos, fatigados, amolentados pelo
sono. Prenunciava-se uma noite fresca de lua alta no silêncio amplo do sertão.
6/1/2015