domingo, 18 de abril de 2010

O RETRATO FIEL - Gilka Machado


Não creias nos meus retratos,
nenhum deles me revela,
ai, não me julgues assim!
Minha cara verdadeira
fugiu às penas do corpo,
ficou isenta da vida.

Toda minha faceirice
e minha vaidade toda
estão na sonora face;
naquela que não foi vista
e que paira, levitando,
em meio a um mundo de cegos.

Os meus retratos são vários
e neles não terás nunca
o meu rosto de poesia.
Não olhes os meus retratos,
nem me suponhas em mim.

CANTARÃO OS GALOS - Cecília Meireles


Cantarão os galos, quando morrermos,
e uma brisa leve, de mãos delicadas,
tocará nas franjas, nas sedas
mortuárias.


E o sono da noite irá transpirando
sobre as claras vidraças.


E os grilos, ao longe, serrarão silêncios,
talos de cristal, frios, longos, ermos,
e o enorme aroma das árvores.


Ah, que doce lua verá nossa calma
face ainda mais calma que o seu grande espelho
de prata!


Que frescura espessa em nossos cabelos,
livres como os campos pela madrugada!


Na névoa da aurora,
a última estrela
subirá pálida.


Que grande sossego, sem falas humanas,
sem o lábio dos rostos de lobo,
sem ódio, sem amor, sem nada!


Como escuros profetas perdidos,
conversarão apenas os cães, pelas várzeas.
Fortes perguntas. Vastas pausas.


Nós estaremos na morte
com aquele suave contorno
de uma concha dentro da água.


(Flor de Poemas)

ESCREVE-ME... - Florbela Espanca


Escreve-me! ainda que seja só
Uma palavra, uma palavra apenas,
Suave como o teu nome e casta
Como um perfume casto d'açucenas!

Escreve-me! Há tanto, há tanto tempo
Que não te vejo, amor! Meu coração
Morreu, já e no mundo aos pobres mortos
Ninguém nega uma frase d'oração

"Amo-te!" cinco letras pequeninas,
Folhas leves e tenras de boninas,
Um poema d'amor e felicidade"!

Não queres mandar-me esta palavra apenas?
Olha, manda então... brandas... serenas...
Cinco pétalas roxas de saudade...

(Poemas de Florbela Espanca)

LENDO-TE - Humberto de Campos


“As roseiras aqui já estão florindo...”
Mandas dizer... “As híspidas e pretas
Rochas da estrada já se estão cobrindo
De musgo verde... Há muitas borboletas...”

E eu me fico a pensar que agora e o lindo
Mês das rosas esplêndidas e inquietas
Asas: mês em que todo o ser anda sorrindo,
E em todos os pássaros são poetas.

Vejo tudo: a água canta entre os cafeeiros
Vejo o crespo crisântemo e a açucena
Estrelando a verdura dos canteiros.

Penso, então, que em tudo isso os olhos pousas...
E começo a chorar... Olha: tem pena,
Não me escrevas falando nessas cousas