sábado, 4 de agosto de 2012

DE OLHOS ENTREABERTOS


ENSAIO
A poética de Aíla Sampaio
04.08.2012

A vida nunca se faz plena como se um passe de mágica estivesse por trás das aparências

A eternidade não depende do tempo, mas do desejo com que buscamos possuir a plenitude das coisas. Existir não é o mesmo que viver, assim como escrever é possuir o indizível da língua, e, assim, traduzir também o seu mistério, em face da sua transcendência. De Olhos Entreabertos, os escritores costumam conversar com as estrelas, representar o brilho dos cristais e acolher em seu texto a solidão dos que vegetam enquanto o cosmos agoniza. Leia-se o poema "Tela":

(Texto I) O ato da criação literária é o mais atomizado de todos os processos de representação da arte; é o mais denso e o mais sagrado de todos os prazeres do corpo, e é a forma mais sólida de representação do mundo perante os apelos da história. A pós-modernidade compreende o oblívio de Deus substituído pela ilusão do Capital, como se a mercadoria fosse capaz de intuir o sentido supremo do sagrado; como se a estética do gosto fosse superior à estética da arte, como se o sagrado fosse assim, capaz de sucumbir diante da sedução do efêmero.

A arte da palavra

As marcas e as grifes são apenas miçangas ou enfeites de uma civilização em ruína, esmagada pelo consumo e pela tentação do capital e das suas formas miseráveis de alienação e acumulação. Vejam-se, então, os versos de "Desvarios de maio":

(Texto II)

Assim sendo, urge que a arte, a arte mais sutil e prazerosa, a arte mais pura e a mais sofisticada assumam o seu lugar no discurso do caos, para que a linguagem poética e a sua liturgia possam reconquistar o espaço soberano do texto. A representação da poesia nunca perdeu o seu lugar na história. Na era em que o homem mais decididamente mergulhou na guerra, em nome da ilusão do mito, Ulisses ressurgiu como o herói de todas as idades; e quando o céu e o inferno se fundiram na idade escura da magia, Dante segurou a mão de Virgílio e nos devolveram, por fim, a claridade, o sentido poético da alegoria e a escansão do verso refletido. Os tempos de enfrentamento da linguagem agora são outros, mas a poesia está sutilmente em toda parte. Poetas existem no mundo de todas as maneiras, e poetas ruins é o que não falta em todos os quadrantes do globo. O Ceará é uma terra povoada de muitos escritores e de Academias que não valem o preço com que foram feitos os seus estatutos, mas é também uma terra de veras escritoras, da estirpe de Ana Miranda, Marly Vasconcelos, Natércia Campos, Inez Figueredo, Giselda Medeiros e Tércia Montenegro, dentre outras.

A essa elite de escritoras de talento pertence o nome de Aíla Sampaio, que conheci ainda por ocasião da sua estreia, e cuja evolução venho acompanhando com respeito e curiosidade, porque profícua a sua produção, porque profundos os seus conhecimentos, porque sincero e visceral o seu compromisso com a palavra ritmada e com a palavra fundadora do belo. Como, por exemplo, nos versos de "Silêncio antigo": (Texto III)

Depois de chamar a atenção do público, com a sua tese de mestrado sobre os mistérios de Lygia, e de esquadrinhar as vozes da sua escritura sutil e polifônica, Aíla entrega-se agora à sedução da poesia, abrindo o seu baú de desejos e expondo totalmente aos ventos a vertigem fatal da sua poética fulgurante. E, por entre curvas e desvios, Aíla Sampaio vai construindo a sua arte, tecendo as suas teias, e mergulhando na sua solidão compartilhada, entretendo os seus leitores com a força aliciante da palavra e da sua beleza metafórica.

Das temáticas

A poesia de Aíla Sampaio, nesse seu livro, de título sugestivo, faz-se a um só tempo verbo e escansão, solidão e reticência, e purgação da morte em face da libido do tempo.

O amor, a comunhão a dois e a busca incessante de Eros, para aplacar os desafios da vida e os sentidos cambiantes do corpo, se entrelaçam, nesse livro novo de Aíla Sampaio, como se fossem os seus esteios de maior destaque. Leiam-se os versos do poema "De outro tempo": (Texto IV)

Eis, portanto, De Olhos Entreabertos (Fortaleza, Editora Sponti, 2012), um livro cuja linguagem nos seduz, um livro que dignifica a sua autora e que não desmerece a ensaísta. E que faz da sintaxe do desejo (e também do verso refletido) o espaço poético da arte literária.

O QUE ELES PENSAM

"Na poesia de Aíla Sampaio, uma das marcas mais expressivas reside no cultivo de metáforas entrelaçadas a impressões sensoriais".

CARLOS AUGUSTO VIANA
Escritor

"Nesse livro, o tema do amor, explorado sob múltiplos ângulos, abre caminho para a reflexão sobre a própria fragilidade do ser humano".

JOSÉ TELLES
Poeta

Trechos

TEXTO I

O tempo costura a vida com pontos de cruz, / fazendo desenhos multicores no véu dos dias. / Na tela em que meu destino foi bordado, / não há manchas de dedos / nem frouxos alinhavos / desfazendo a harmonia. / Nasci, certamente, das bordadeiras de sonhos / que tecem lenços azuis todas as manhãs / para que a realidade, com seu duro fardo, / não pesponte escuridão onde o traço é de luz.

TEXTO II

Desse olhar esgarçado sobre o poente, / dessa lamúria que é o vento antes da chuva, / fiz a tarde com seus desvarios de maio. /// Não fosse hoje um domingo qualquer / eu teria motivos para não ler nada / e veria TV, bandeira branca a meio-palmo / e mansidão para seguir as procissões de Maria. / Mas não é assim o meu desenho / tão fácil de distinguir as cores e as linhas / rascunhadas. /// Surpreendem-me vontades de sesta, / sono profundo ao meio-dia / e saudades que não posso mais matar. / Tanta abstinência, tantas orações / e o coração não sara... / continua a sangrar ao menor esforço / e a me matar aos poucos todos os dias.

TEXTO III

Há sempre uma casa / com seu silêncio antigo / e seus conhecidos fantasmas / a nos habitar. / Há sempre a memória / de um amor interdito, / a dar a ilusão / de que a felicidade está / apenas / no que poderia ter sido. /// O tempo vivido desliza, / guardando abismos que / devoram a carne do tempo. / O que nos pertence / é apenas o presente / e a certeza de que eterno / é somente o que não se realiza.

TEXTO IV

Essa casa desabitada / perdida no abandono dos ventos / (que sopram sem direção) / é o corpo que veste a minha alma. / Suas portas batem / atrás de um adeus sem data, / cavando feridas nas paredes retintas, / guardando ferrugem nas trancas / e escoriações nos portais. /// Há hera nas vigas e nos muros, / fechando porteiras, lacrando janelas / até sempre ou nunca mais. /// No jardim, presente e passado / perdem-se soterrados / pelo musgo que cresceu. /// Dentro de mim, acordado, / geme um silêncio de muitas eras / e grita a lembrança de um tempo / que não é o meu.

DIMAS MACEDO
COLABORADOR*
*Da Academia Cearense de Letras