segunda-feira, 13 de setembro de 2021

EU SOU AQUELE QUE COME AS FLORES DO ANIVERSÁRIO - Crônica de Túlio Monteiro

“Refratário aos mistérios e enigmas do encantado, em atração constante pelo mito, pela magia, pelo difuso, pela penumbra da inconsciência, possui a grande ciência do texto lírico, belo, inovador e ousado. Travestido de compadre do diabo, é, entretanto, um romeiro devoto, capaz de fazer promessas e vestir o balandrau do Pobrezinho de Assis. Finge regar os caminhos de Satã para vencê-lo de tocaia e ganhar as graças de Deus.”  (Juarez Leitão)

I

Sábado cedo!
Como de costume levanta-se, esticando músculos e ossos já utilizados, amiúde, por mais oito décadas. Passara a noite nu, porque o nu nunca lhe fora mais que beleza, liberdade corpórea, utilização da carne em prol da satisfação mútua dos corpos que, um dia, acolheram o seu em alcovas muito ou nada corretas… o que definitivamente não lhe importava- já que sexo nunca nada lhe mais fora que o prata emanado das estrelas e luas do caleidoscópio estridente de gozos bramidos noites adentro, pois todo homem que não presta e se preza faz sua mulher perder a vergonha, gemer e voltar sempre aos seus braços e beijos. Pois como a Lua excita a mente dos loucos, desperta o ciúme e a paixão dos poetas, levanta o nomadismo dos ciganos e faz com que o assassino vislumbre de longe a sua vítima, assim as mulheres e os homens livres de dogmas puritanos conduzem seus pares à sublimação e ao clímax … a Eros e Tanatos.
Não se queixava mais da vida, apesar de já ter perdido todos os “bicos” que fazia nos jornais, andando agora doente, os nervos escangalhados, o coração dando arrancos, muitas vezes infligindo-lhe noites de insônias rebeldes que o levavam a pensar em crimes, suicídios e outras coisas absurdas, satânicas até.
Sim! A velhice havia-lhe chegado qual grades intransponíveis. Olhos mirados nos espelhos da escrita, enxergava-se agora espectro, um velho sem família, sem parentes ou amigos. Um trapo, um bicho indefeso atirado aos abutres amontoados em colinas pontiagudas e labirínticas que certamente ocultam dragões, herdeiros, talvez, daquele que habitou – e por lá ainda durma pesado sono – as profundezas do Alto dos Angicos, pedaço do Ceará que o Coronel-garanhão Antônio José Nunes, em século já ido, arrebatou das mãos dos Tremembés.
Trinca-se o espelho da imagem envelhecida. Que se fossem, malditamente, para o mais abissal dos Infernos de Dante as lembranças de tempos, felicidades, sofrimentos e corpos passados. Valia-lhe mais o ali e o presente.
Oito décadas e meia pelo setembro que se aproximava, já tantas vezes havia sentido a morte roçar-lhe sobre os ombros com seu carrilhão de plumas eriçadas como a cauda de um réptil venenoso, que no mundo nada mais o assustava. Preferia repetir Fernando Pessoa e “exigir de si mesmo o que sabe que não poderia fazer. Pois não é outro o caminho da beleza”. Ou Byron, “onde todas as coisas que nasceram, só nasceram para morrer. E a carne é uma erva que a morte ceifará”.

II

A manhã daquele sábado já deslizava para a tarde quando decidiu sair, deixando de lado o passado remoto que sempre teimava em aborrecer-lhe com coisas que só lhes serviam de entrave na vida. O dia estava quase pelo meio e flanar pelas ruas com ou sem saída da velha Gentilândia seria o remédio maior para o tédio que o invadia. Era o revelho dragão que mais uma vez deixava a Vila Cordeiro para serpentear os ares da cidade que escolhera para servi-lhe de caverna.
Voos tranquilos rumo ao centro da cidade, quase nunca repetia percursos, algo assim sem querer deixar pistas, rastros aéreos de seu Norte Verdadeiro: a Literatura! E como escrevia furiosamente bem aquele sábio dragão, riscando os céus da prosa e da poesia com a maestria pertinente apenas aos guardiães da literariedade de primeira linha.
Entretanto, no final daquela manhã de sábado, o monstro fabuloso resolveu parar seu bater de asas e mergulhar em direção ao chão. Seguiria andando, podendo, assim, ver e rever velhos conhecidos que o cumprimentavam quase em reverência sempre que seus pés e braços alados tocavam o solo infértil e relegado aos desprovidos de almas poéticas. Nessas horas, transmutava-se em humano, disfarçando-se para não dar na vista, nem ser perseguido pela legião de admiradores que arrebatara desde seus primeiros anos de escrita.
Entretanto, desistir de seu voo e descer ao solo tornou-se erro fatal. Ao tentar mudar de calçada, não percebeu que em sua direção um outro dragão se aproximava impiedoso, alta velocidade, urrando em voo rasante e nefasto.
Foi pego com a guarda baixa o maior dos dragões brasileiros.
A pancada sofrida por seu frágil disfarce humano lançou-o longe, o asfalto como campo de batalha recebendo gotas de seu sangue real. Sem lhe dar chances de defesa, seu algoz o atingira em cheio no tórax e cabeça, incapacitando-o de rufiar asas e voltar a sua toca, onde certamente curaria as feridas como tantas vezes já ocorrera em combates passados. Estava ferido de morte, o monstro áleo de Santana do Acaraú.
Ainda transmudado em corpo de homem, foi levado a hospitais onde bravamente agonizou por mais quase um dia, sob os cuidados dos sinceros amigos que sabiam de sua secreta identidade. Outros de sua estirpe? De uma casta linhagem que atravessou os séculos misturando-se entre homens comuns para acalmá-los nas horas de mais angústia e ânsia por poesias e um pouco de paz? Nunca o saberemos!
Foi sepultado, como era de seu desejo, em solos da Fazenda do Dragão, encravada nas terras de São Francisco do Estreito, onde, segundo narra certa lenda, ele nascera em forma de gente.
Naquela mesma tarde, dizem os que por lá estavam presentes, um vento Aracati insistentemente soprava aos ouvidos dos iniciados um poema há muito escrito pelo Dragão que se fora:

O menino jaz atropelado:
Nossa Senhora, salve o menino!
Deixe que eu morra em seu lugar.
Deixe que eu morra por ti, menino.
Deixe que eu morra atropelado.
Nossa Senhora Salve o menino! …

(“Desastre às 13h e 30 min”. ln: As Tágides, (1998), de José Alcides Pinto)


JOSÉ ALCIDES PINTO, ficcionista e poeta, nasceu no dia 10 de setembro de 1923 em São Francisco do Estreito, distrito de Santana do Acaraú, no Ceará. Filho de José Alexandre Pinto, capitão de tropa de cigano, e de D. Maria do Carmo Pinto, descendente dos índios Tremembés, que se fixaram na povoação de Almofala, no Acaraú, no fim do século XVII.
Diplomou-se em Jornalismo pela Faculdade Nacional de Filosofia da antiga Universidade do Brasil e em Biblioteconomia pela Biblioteca Nacional. Fez o curso de especialização em Pesquisas Bibliográficas em Tecnologia no Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação (IBBD) e o Curso de História da Américas ela Universidade do Brasil.
Jornalista profissional, tendo ingressado na imprensa muito jovem. Colaborou nos Suplementos Literários do “Diário Carioca”,’ “O Jornal”, “Diário de Notícias”, “Correio da Manhã”, revista “Leitura” e em toda a imprensa de Fortaleza Pertence à Associação Brasileira de Imprensa (ABI), ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro e Sindicato dos Jornalistas Liberais do referido Estado.
Romancista, crítico literário, teatrólogo e poeta, tem livros publicados nesses gêneros, participando de várias antologias nacionais e estrangeiras. Recebeu o Prêmio José de Alencar da Universidade Federal do Ceará referente a obras no gênero Romance e Conto (1969). Coube-lhe, ainda, o Prêmio Categoria Especial para Conto (1970), concedido pela Prefeitura Municipal de Fortaleza. É o principal responsável pela introdução do Movimento Concretista no Ceará. Em 1972 foi incluído na Enciclopédia Delta Larousse.
Participou de antologias nacionais e estran­geiras. Ganhador de vários prêmios, entre eles o Prêmio Nacional da Petrobrás, na categoria conto, 1988, e o Grande Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), 1999. Foi pro­fessor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universida­de Federal do Ceará. Tem livros publicados na área do romance, novela, conto, teatro, poesia e crítica literária. É considerado um poeta de vanguarda e experimental.
José Lemos Monteiro, escri­tor e professor da UFC, escreveu um longo estudo sobre sua obra poética, intitulado O universo mí(s)tico de José Alcides Pinto publica­do pela Imprensa Universitária, em 1979, e que se constitui a pri­meira fonte importante de pesquisa de sua poesia, ao lado do livro A voz interior em José Alcides Pinto, do psiquiatra e poeta Carlos Lopes. Fortaleza. Edição do Autor, 1989; bem como um longo ensaio de Nelly Novaes Coelho – Erotismo, satanismo, loucura, na poesia de José Alcides Pinto Fortaleza, IOCE, 1984. Em 1996, o es­critor Floriano Martins organizou uma antologia crítica da obra de José Alcides Pinto – Fúrias do oráculo, editada pela Universidade Federal do Ceará. Também o professor e escritor Paulo de Tarso (Pardal), publicou um ensaio crítico intitulado O espaço alucinante de José Alcides Pinto, Edições da Universidade Federal do Ceará, 1999. A Editora GRD, Rio, editou em 1996 Cantos de Lúcifer (Poemas Reunidos), com prefácio de Cassiano Ricardo; e a Im­prensa Oficial do Ceará (IOCE), em 1984 lançou Antologia Poé­tica, organizada pelo crítico Rogaciano Leite Filho.

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

 Apreciação Literocientífica



SOB O ESPECTRO DE FUNDO E QUANTO AO PRISMA DA FORMA*

[Releitura]


Vianney Mesquita 



            Quanto mais lemos, tanto mais nos instruímos, e quanto mais meditamos, tanto mais estamos em condição de afirmar que  nada sabemos. [Francois-Marie Arouet -VOLTAIRE. Paris, 21.11.1694/30.05.1778 ].                   


Sempre nutri e conservei particular afeição pelo ofício-arte da Enfermagem, com suas vinculações estritas aos diversos ramalhos das Ciências da Saúde. Na decorrência de misteres profissionais e acadêmicos, desde largo ciclo temporal, travo incessante contato com os agentes desta nobre carreira, nomeadamente no âmbito da Universidade, na posição de consultor para assuntos linguísticos, gramaticais, semânticos e estilísticos, em produções de sua colheita, como peças científicas stricto sensu.


    Nessa relação simbiôntica, aprendi cedo a lhes apreciar o esforço exitoso de pesquisas, com subido potencial metodológico, resultados esclarecedores e aplicação prática imediata, numa expressão categórica do acompanhamento do estado d’arte desta atividade sublime por eles abraçada.


    Conquanto não perfilhem temas do meu trato universitário, muita vez – como sucede agora – sou conduzido a escoliar a respeito de trabalhos de sua lavra, especialmente quando editam livros, quase sempre provenientes de textos-base dos seus relatórios finais de mestrado e doutorado. Evidentemente, como o “sapateiro não deve ir além das sandálias” [Ne sutor ultra crepidam], cinjo-me, de ordinário, a analisar, tão-só, a propriedade de termos e dicções, como disse, certa vez, Gilberto Freyre, na qualidade de “mero mata-mosquito da ordem gramatical”.

 

    Vez por outra, entretanto, o afouto sapateiro de Plínio, o Antigo [Caio Plínio Segundo], acha de querer ultrapassar o calçado mostrado na pintura de Apeles de Cós e adentrar matéria avessa à sua intimidade, submetendo-se ao risco de laborar no engano.


    Como, entretanto, a temática de ordem geral – penso – não é território reservado de ninguém, vale a parêmia escolástica consoante a qual o exame da Ciência não tem por objeto o saber particular – totum individuatum ineffabile est – ou seja, o todo individualizado é inexprimível, de modo a inexistir, em tese, o conhecimento privado.


    Assim, sob esta razão (talvez) evasiva, penetro astuciosa e perigosamente outros saberes, não sem o cuidado de me liberar de tautologias e expressar heresias, no senso popular do termo, haja vista o terreno sempre movediço das temáticas não dominadas por quem, sem tir-te nem guar-te, com a maior sem-cerimônia científica, tenta comunicar-se em seara estrangeira.


    Ao levar em conta, porém, o preparo insuficiente de escrevinhador deserdado de mais alargado saber ecumênico, sou continente nos meus comentários, parcimonioso nos rasantes por teores a este estranhos, de sorte a ser bem-sucedido nessas pequenas empresas a mim cometidas pelas inexcedíveis atenções de meus consulentes, às quais, humildemente, acedo.


    Todos esses arrodeios e ambages serviram de aprestar o canteiro da obra, a fim de expressar o fato de O Cuidado à Família em Atenção Primária, livro da Prof.a Dra. Lígia Barros Costa, docente da Universidade Federal do Ceará, membra atuante da fina-flor da Enfermagem no País, representar a oportunidade de o leitor abeberar-se de conhecimentos bem meditados a respeito do cuidado à saúde da família, na relação elastecida de refleti-la e cuidá-la, objetivando, não só, a ausência de doenças, como também a higidez e o bem-estar, entendimento hodierno de saúde.


    Sobre ser o compêndio bem escrito, tanto sob o espectro de fundo quanto jungido ao prisma da forma, diviso o maior proveito deste volume no ato de fazer convergir a chamada communis intellectus ao saber unificado parcialmente, este provindo da anterior como vertente natural da Ciência, não devendo o pesquisador, por hipótese alguma, fazer pouco caso de seu valor e serventia.


    A tarefa de relacionar os dois hemisférios de saberes procedida pela Autora objetiva – creio, com sucesso – valorizar, às derradeiras consequências, o ato de conceder atenção à família, de maneira afastada do biologicismo de ontem, praticado agora, sistêmica e holisticamente, privilegiando todas as instâncias da vida com o concurso desse grupo sociológico primário configurado na família.

 

*COSTA, Lígia Barros Costa. O Cuidado da Família em Atenção Primária. Fortaleza: Edições UFC, 2008. 14