A
SOCIEDADE DE CANSAÇO E A POÉTICA
DA CONTEMPLAÇÃO DE HORÁCIO DÍDIMO
Paulo
Lobão
As formas de violência
multiplicam-se na sociedade contemporânea, roubando do homem o direito à
existência plena. A opressão assumiu uma condição singular: a violência
neuronal. Byung-Chul Han, importante filósofo contemporâneo, realiza um lúcido
diagnóstico, no ensaio Sociedade do
Cansaço, sobre a face dessa irascibilidade dos novos tempos. Segundo o
filósofo, a sociedade do século XXI não é mais a sociedade
disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se
chamam mais “sujeitos de obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção.
São empresários de si mesmos” (Byung-Chul Han, p.22). A
arquitetura da violência neuronal vincula-se ao excesso de positividade,
causando no sujeito a saturação e a exaustão extrema como consequência de uma
estrutura organizacional de desempenho, a mais nova forma de dominação. Os
infartos psíquicos, conforme assinala o filósofo, são sintomas dessa nova
ordem. A locução verbal “posso fazer” traduz, de forma precisa, a as exigências
da sociedade do desempenho, o que superaquece a nossa capacidade de realizar. A
resposta negativa às imposições dessa sociedade constitui um monumento ao
fracasso, incutido por um conceito de negatividade, tornando o indivíduo refém
do desempenho a ele exigido. Fracassar é um verbo estranho ao pensamento que
ordena esse mecanismo de dominação. Assim a opressão vem de dentro, de uma
autosabotagem. Quem não for capaz de atender as demandas sofre um processo de
marginalização, pois a expressão maximização
de resultados é o axioma que se instalou na cabeça do homem contemporâneo,
arrancando-lhe o tempo de existir. Adoece-se por não se saber mais empregar o
advérbio de negação “não”; morre-se por se dizer sempre sim ao não.
Instrumentos de resistência a essa condição imposta pela sociedade do
desempenho parecem escassear. A virtuose da contemplação, elemento fundamental
para a construção da consciência, é um poderoso mecanismo para escapar desse
labirinto alucinante. E sim, a literatura certamente é um território de
resistência. Tome-se como exemplo a poética de Horácio Dídimo. Impregnada de um
lirismo de contemplação, a poesia Horaciana revela-se como literatura
humanizadora, atravessada pela esperança, permitindo ao homem uma imersão no
silêncio que grita na comunicação dos arranjos linguísticos empregados pelo
poeta. É uma poesia iluminada, provocadora e epifânica, construindo um grande
repositório da existência. Some-se a toda essa inclinação reflexiva a
inventividade formal, dialogando com as diferentes formas estéticas, o que lhe
confere contemporaneidade, mas sem que lhe escape esse olhar mais profundo para
nossas entrâncias e reentrâncias. Constrói-se, portanto, um caleidoscópio
literário, firmado por seus inventos poéticos. Há um transbordamento da
linguagem, cujo resultado é original e inusitado, permitindo ao poeta um livre
trânsito entre as diferentes vertentes da poesia: desde as reflexões sobre o
fazer poético até as inclinações surrealistas. A obra A palavra e a Palavra ilustra, de maneira contundente, as
experimentações horacianas, definindo o poeta não apenas como um representante
da moderna poesia brasileira, de clara adesão concretista, mas também como um
poeta que consegue alcançar, por meio dos versos que escorrem de seus dedos, as
dimensões mais profundas da alma humana, ressignificadas pela palavra divina,
gerando a importância da espiritualidade frente à lamina cortante de uma nova
ordem sosical que decepa sonhos e “declara à vida guerra”. Não se esqueça aqui do pleno domínio do poeta
no que concerne às possibilidades da gramática na sua riqueza polimórfica e
plurissemântica, extraindo da dureza dos substantivos perfilados a dor de estar
emparedado, representada pelo desespero de um murro e de um grito, resultante
de desdobramento da palavra nas suas possibilidades estruturais e
significativas. Observe o poema:
o
emparedado
muro
muro
muro
muro
muro
(...)
muro m(urro)
A decomposição mórfica de um
substantivo em suas unidades gráficas e fonéticas também serviu ao poeta como representação
simbólica de uma existência efêmera, evocando no leitor uma consciência sobre
esses tempos nebulosos. A analogia imagético-verbal aproxima a parca existência
ao consumo do cigarro. A fumaça é o elemento representativo em contiguidade
semântica com a vida frágil e fugaz. A severidade do tema ganha certos
contornos de ironia no consórcio significativo entre os vocábulos “cinza” e
“sarro”. Se por um lado o sarro é a
crosta marcante após o consumo do cigarro, por outro pode representar o ato
peremptório de divertir-se de outrem.
a
fumaça
cigarro
cigarr
cigar
ciga
cig
ci
c
cinza
sarro
A concisão da linguagem, uma
conclusão unânime de ensaístas sobre a poética de Horácio Dídimo, fundamenta-se
num elaborado e sofisticado domínio no manejo das potencialidades das palavras,
arrancando-lhes possibilidades, às vezes impensadas, provocando no leitor
contemplativo as mais inusitadas e lúdicas surpresas linguísticas e
envolvendo-o no encantamento do fazer poético. No processo de substantivação
dos termos “pouco” e “muito”, por meio da derivação imprópria, o poeta
sentencia que a lição é dura, embora sensível: a importância do suficiente numa
sociedade dos exageros e da extremada positividade. Assim, o termo “pouco”, de
claro valor indefinido, ganha uma lógica de pretensa precisão, sofrendo uma
ressignificação semântica ao apresentar a ideia da suficiência. Observe os
versos:
o pouco pode ser o muito
disfarçado
A poesia de Horácio edifica e
renova as convicções humanas. Nessa “Roda viva” do cotidiano, em que caminhamos
para as lonjuras do destino, a poesia de Horácio se impõe como mediadora da
esperança em um mundo quase desesperado, resgatando-nos dos abismos da
descrença e da negatividade, constituindo-se num espaço de contemplação e
descobertas em meio a essa sociedade do cansaço de que nos fala Byung-Chul Han.
É uma poesia engenhosamente
arquitetada; uma grande festa da linguagem artística em suas formas, cores,
texturas, sentimentos e reflexões. Essa comunhão mágica realiza-se pela
plenitude lúdica da palavra. Eis o poeta da palavra que desfila densidades no
exercício da inventividade; eis o poeta que retira do intervalo entre a palavra
no papel e o silêncio da leitura as razões do seu ofício: aliviar o peso do
mundo que acreditamos carregar.
Bibliografia
DÍDIMO, Horácio. A palavra e a Palavra. Fortaleza, Edições UFC, 2002.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.
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