terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

SOB EROS E THANATOS, DE GISELDA MEDEIROS, POR DIAS DA SILVA



SOB EROS E THANATOS



Confirma-se: Giselda Medeiros – além de poeta admirada e lida por tantos – vem a público, agora, como contista, que com certeza “terá o mesmo destino. Simplesmente porque é grande”. Em destaque, expressões do prof. Genuíno Sales, que já escrevera antes: “... Seus contos são histórias de vida e muito bem contadas porque contadas com as letras do coração”.

De fato:  Sob Eros e Thanatos são trinta e sete histórias de vida. Porque são histórias de gente. Porque são pedaços de vida de gente. Porque são histórias de sonhos. De esperança. De saudade. De solidão. De pobreza. De amarguras. De tédio. De buscas e procuras. De solidariedade. De curiosidade. De confidências. Da cruel realidade. De mistério. De incertezas.
           
Porque sonhar e esperar é coisa de gente. Saudade é coisa de gente. Solidão – a de sentir-se só – e a essencial, que é a de ser único no mundo –, são coisas de gente. Pobreza, estado de vida inevitável (pobres sempre os haverá), é coisa de gente. Porque o ser humano é um esterno insatisfeito e a busca interminável é coisa de gente. Porque a vida se alterna entre o prazer e o tédio, e o prazer e o tédio são coisas de gente. Porque são histórias das Marilus inúmeras por aí em fora. Das Cecílias sem conta. Das casinhas de esquina: há sempre uma casinha na esquina.

Assim, por feitos de gente. De sentimentos de gente. De dores de gente – a dor é a substância da vida. Aos contos de Giselda Medeiros não lhes cabe a denominação de lineares ou de histórias concretas para serem lidas e narradas oralmente, pelas calçadas ou em círculos de pessoas. Os cenários e motivos ou, melhor dizendo, os pretextos são materiais e concretos: a pousada. A casinha da esquina. A fogueira. A lagoa. A pescaria. A serpente. As flores. A surpresa é que a Autora faz pouquíssimas referências (descrições) à pousada. À lagoa. À fogueira. À casinha da esquina... O leitor vai perceber o pulo rápido e espontâneo e sutil do concreto para o abstrato. Do motivo concreto e particular para o universal. Do palpável ao imaterial. É o aproveitamento do cenário da pescaria, por exemplo, para a fundamentação da traição e para dizer da força do sexo proibido. A serpente é só o pretexto para o aguçamento do desejo sexual e sua concretização.

Também nas histórias da autora de Tempo das Esperas, permeia o clima de mistério e de surpresa, na quebra do ritmo das narrativas bem arrumadas. Em poucas linhas, Giselda Medeiros mostra os cenários e logo vem o mistério. O leitor não sai do livro com o retrato formado da casinha da esquina, senão com a imagem de Lúcia (há tantas por aí em fora), da implicante Sarinha; do desapontamento de Lúcia sentindo-se rejeitada por outras crianças, da amargura de dona Francisca. Os três últimos parágrafos beiram, assim, a experiência concreto-surrealista. O recurso do mistério, da surpresa e do humano faz dos contos de Giselda Medeiros histórias universais, de lições e de salvação. Trata-se, pois, de contos sem idade que podem ser prolongados ou se podem fazer mais longevos por sua literariedade.

O aspecto conotativo da linguagem é dominante em todas as páginas, pela atribuição de significados novos e criação de novas relações entre as palavras, com domínio desse recurso. São contos, contudo, de fácil compreensão, apesar da aura de mistério e da freqüência das imagens e das figuras, cujo quase abuso amortece tanto ou quanto o refinamento do conteúdo mental e enredo do conto, recursos que devem ser usados, neste gênero, com certa parcimônia e não repetidamente. Os textos de Sob Eros e Thanatos, em face da abundância imagética e de conotação, ganham em sonoridade e música, ante o que a alma do leitor ressoa e vibra, o estilo se reveste de certo rebuscamento de figuras e imagens, diluindo um pouco a ação. É a poeta e a contista se reclamando e se completando, numa coexistência pacífica: poesia e prosa se misturando.

A frase de Giselda Medeiros é curta. Delas curtíssimas. De uma palavra só às vezes. Não há o que se corrigir na estrutura frasal da Autora, que prima pelo uso clássico do pronome oblíquo lhe, que deixa elegante a linguagem.

“Grande poeta não poderia deixar de ser grande contista”. Giselda Medeiros, poeta consagrada, com uma obra poética profunda, revela-se, agora, como contista, com um caminho à frente a palmilhar. O que é importante é que a Escritora tem já toda a ferramenta e a matéria-prima, porque tem o domínio da frase curta e contundente, da palavra usual (e da conotação) e do período harmonioso. E mais: tem outras qualidades do bom contista: a fuga da obviedade, dispensa de detalhes desnecessários, dosagem de mistério nas entrelinhas, exigindo do leitor esforço mental como num trabalho de co-autoria (o leitor deve ser um co-autor).

Assim, futuros contos de Giselda Medeiros poderão perder na extensão – síntese não é perda –, far-se-ão, todavia, obra de arte que se caracteriza pela longevidade.

Pois não, amigo leitor, Sob Eros e Thanatos é uma obra recheada de gente. De pedaços de vida e de pedaços de alma que são de todo mundo, no mundo todo. Nenhum texto que fale de outro texto diz mais sobre o texto em questão. Ou seja: a leitura destas impressões não substitui a leitura dos contos de Giselda Medeiros, todos ricos de conteúdos mentais universais. Independente do que se escreveu ou do que se não disse sobre, o leitor precisa folhear Sob Eros e Thanatos, porque o crítico (jamais disse sê-lo) não tem razões a pedir, a contista não tem contas a prestar, pois a arte (os contos de Giselda Medeiros são arte) dispensa rédeas, regras e mordaças.

Que sem mordaça, teorias e regras, continue Giselda Medeiros criando suas histórias, com riqueza e versatilidade dos meios verbais.

                                                                            Dias da Silva
                                             Editor de BINÓCULO – caderno de leitura
                                                 Membro da Academia Lavrense de Letras  

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

MAIS UM CONTO DE GISELDA MEDEIROS


SELMA
Giselda Medeiros

Ainda a bordo do avião, fico a pensar em Selma. Como será o nosso reencontro?! Imagino-a mais madura (quem sabe?) curada daquele trauma antigo. Luís, ao meu lado, finge não perceber minha preocupação, chamando-me a atenção para suas leituras. Sei que o seu objetivo é desviar meus pensamentos. No entanto, à medida que a distância aérea vai sendo vencida, mais eu me vou compungindo nesta expectativa de novamente reacender toda uma triste história adormecida no passado.
Ficar três anos longe do Brasil (e sem notícia, pois assim achara melhor Dr. Enrique) fizera-nos um bem enorme. Estamos inteiros, Luís e eu, para esclarecer (digo melhor, virar) uma página que não fora lida, muito menos interpretada com exatidão. Como estaria Selma era a minha grande preocupação. E como reagiria ante o nosso regresso? Sabia-me amada por ela, para quem fui mais que uma irmã, desde a morte de nossos pais. Estaria ela melhor? Tomara!
Toda aquela cena de antes jorrou sobre mim, cascateando dúvidas (como sempre as tive), medo e insegurança. E se aquelas suspeitas fossem duras verdades? Sempre acreditara no óbvio. Mas, se o óbvio passar a ser o não óbvio? Como reagirei? Que atitude tomar?
Após a morte de nossos pais, eu, recém-casa, passara a cuidar dela e não me lembro de ter notado, até essa época, nada de anormal no seu comportamento. Era uma criança precoce, é bem verdade. Com o passar dos dias, formos nos tornando seus pais. Luís a colocava no colo, brincava de cavalinho, de paga-pega, de cabra-cega, enfim, era duas crianças peraltas. Esse clima, familiarmente perfeito, durou até o dia em que presenciei amuar-se quando Luís a pôs no colo. Era natural, pensei, já estava mudando: os seios intumesciam-se, os pelos desenhavam-se no corpo e a menarca precoce que lhe chegara. Desde então, comecei a notar algo esquisito no seu comportamento. Fugia para o quarto, sempre com alguma desculpa, à simples chegada de Luís.
Porque casara muito jovem, aos 14 anos (Luís tinha trinta), não sabia bem como assumir a maternidade nesta fase adolescente. Por isso (e acho que foi aí o meu erro), deixei Luís mais à vontade para iniciá-la nessa nova fase da vida, uma vez eu o via como um verdadeiro pai para ela, amadurecido e experiente. Ah, adolescência, adolescência! – pensei com saudade. Não tive tempo para usufruí-la em sua exuberância nem pude vê-la cair sobre minha irmã. Pobre Selma!
Recriminava-me agora por tê-la abandonado. Digo melhor, não abandonado, pois a deixara sob a tutela do Dr. Henrique, que nos aconselhara a viagem. Deixasse com ele as providências quanto ao caso de Selma.
Novamente Luís intervém, dizendo-me estar perto a chegada. O coração angustia-se. Bate mais forte. Suores. Ondas de frio e calor percorrem-me o corpo. Fecho os olhos, acomodo-me à poltrona e finjo dormir. Rememoro o primeiro encontro com Luís, um empresário recém-saído de um casamento sem filhos. Dizia não querê-los. Este era um ponto discordante entre nós, porque sempre achei serem os filhos uma peça vital no tabuleiro do matrimônio. Tornavam-no mais completo, mais sólido, embora entendesse não ser isso somente o seu sustentáculo. Mas são o sal necessário ao paladar do casal. Diante deste meu posicionamento, Luís sempre achava argumentos para provar que nem sempre eu estava com a razão. Porém o mais intrigante era o fato de ele não querer filhos e gostar tanto de crianças, principalmente das meninas. Sempre fora um bom marido, entretanto uma nódoa pairava no céu. Eu sentia (aliás, sempre senti) algum embaraço na voz, nos gestos dele, quando evocávamos o passado. “Vamos esquecer isso”, dizia-me sempre que queria retomar o assunto.
Agora mesmo, no avião, enquanto finjo dormir, noto-lhe uma ansiedade no olhar, um não sei quê perdido que preciso reencontrar. Finge ler e me examina. Pareço dormir, ele afrouxa a gravata, sério. E, como que tomado de um certo medo, suspira aflição. Novamente volta a me olhar (sinto-lhe o hálito preocupado no beijo que deita nos meus lábios e que me queima pele adentro). O “querida, estamos 
chegando” arranca-me do falso sono.
“Apertem os cintos”... E o pouso em minha terra.
Cumprimentos, abraços, beijos. Nada me distrai. Meu olhar busca Selma com ânsia dorida. Selma! Selma! (?)
“Olá, Dr. Henrique! E Selma?!”
Selma não viera. Tão moça!
Cheia de interrogações, vi cair sobre Luís o olhar áspero, carregado de revolta, vindo do Dr. Henrique no “como vão”, secamente articulado.

(in: Sob Eros e Thanatos)