SOB EROS E THANATOS
Confirma-se: Giselda Medeiros – além de poeta admirada e
lida por tantos – vem a público, agora, como contista, que com certeza “terá o
mesmo destino. Simplesmente porque é grande”. Em destaque, expressões do prof.
Genuíno Sales, que já escrevera antes: “... Seus contos são histórias de vida e
muito bem contadas porque contadas com as letras do coração”.
De fato: Sob
Eros e Thanatos são trinta e sete histórias de vida. Porque são histórias
de gente. Porque são pedaços de vida de gente. Porque são histórias de sonhos.
De esperança. De saudade. De solidão. De pobreza. De amarguras. De tédio. De
buscas e procuras. De solidariedade. De curiosidade. De confidências. Da cruel
realidade. De mistério. De incertezas.
Porque
sonhar e esperar é coisa de gente. Saudade é coisa de gente. Solidão – a de
sentir-se só – e a essencial, que é a de ser único no mundo –, são coisas de
gente. Pobreza, estado de vida inevitável (pobres sempre os haverá), é coisa de
gente. Porque o ser humano é um esterno insatisfeito e a busca interminável é
coisa de gente. Porque a vida se alterna entre o prazer e o tédio, e o prazer e
o tédio são coisas de gente. Porque são histórias das Marilus inúmeras por aí
em fora. Das Cecílias sem conta. Das casinhas de esquina: há sempre uma casinha
na esquina.
Assim, por feitos de gente. De sentimentos de gente.
De dores de gente – a dor é a substância da vida. Aos contos de Giselda
Medeiros não lhes cabe a denominação de lineares ou de histórias concretas para
serem lidas e narradas oralmente, pelas calçadas ou em círculos de pessoas. Os
cenários e motivos ou, melhor dizendo, os pretextos são materiais e concretos:
a pousada. A casinha da esquina. A fogueira. A lagoa. A pescaria. A serpente.
As flores. A surpresa é que a Autora faz pouquíssimas referências (descrições)
à pousada. À lagoa. À fogueira. À casinha da esquina... O leitor vai perceber o
pulo rápido e espontâneo e sutil do concreto para o abstrato. Do motivo
concreto e particular para o universal. Do palpável ao imaterial. É o
aproveitamento do cenário da pescaria, por exemplo, para a fundamentação da
traição e para dizer da força do sexo proibido. A serpente é só o pretexto para
o aguçamento do desejo sexual e sua concretização.
Também nas histórias da autora de Tempo das Esperas,
permeia o clima de mistério e de surpresa, na quebra do ritmo das narrativas
bem arrumadas. Em poucas linhas, Giselda Medeiros mostra os cenários e logo vem
o mistério. O leitor não sai do livro com o retrato formado da casinha da
esquina, senão com a imagem de Lúcia (há tantas por aí em fora), da implicante
Sarinha; do desapontamento de Lúcia sentindo-se rejeitada por outras crianças,
da amargura de dona Francisca. Os três últimos parágrafos beiram, assim, a
experiência concreto-surrealista. O recurso do mistério, da surpresa e do
humano faz dos contos de Giselda Medeiros histórias universais, de lições e de
salvação. Trata-se, pois, de contos sem idade que podem ser prolongados ou se
podem fazer mais longevos por sua literariedade.
O aspecto conotativo da linguagem é dominante em todas
as páginas, pela atribuição de significados novos e criação de novas relações
entre as palavras, com domínio desse recurso. São contos, contudo, de fácil
compreensão, apesar da aura de mistério e da freqüência das imagens e das
figuras, cujo quase abuso amortece tanto ou quanto o refinamento do conteúdo
mental e enredo do conto, recursos que devem ser usados, neste gênero, com
certa parcimônia e não repetidamente. Os textos de Sob Eros e Thanatos,
em face da abundância imagética e de conotação, ganham em sonoridade e música,
ante o que a alma do leitor ressoa e vibra, o estilo se reveste de certo
rebuscamento de figuras e imagens, diluindo um pouco a ação. É a poeta e a
contista se reclamando e se completando, numa coexistência pacífica: poesia e
prosa se misturando.
A frase de Giselda Medeiros é curta. Delas
curtíssimas. De uma palavra só às vezes. Não há o que se corrigir na estrutura
frasal da Autora, que prima pelo uso clássico do pronome oblíquo lhe,
que deixa elegante a linguagem.
“Grande poeta não poderia deixar de ser grande
contista”. Giselda Medeiros, poeta consagrada, com uma obra poética profunda,
revela-se, agora, como contista, com um caminho à frente a palmilhar. O que é
importante é que a Escritora tem já toda a ferramenta e a matéria-prima, porque
tem o domínio da frase curta e contundente, da palavra usual (e da conotação) e
do período harmonioso. E mais: tem outras qualidades do bom contista: a fuga da
obviedade, dispensa de detalhes desnecessários, dosagem de mistério nas
entrelinhas, exigindo do leitor esforço mental como num trabalho de co-autoria
(o leitor deve ser um co-autor).
Assim, futuros contos de Giselda Medeiros poderão
perder na extensão – síntese não é perda –, far-se-ão, todavia, obra de arte
que se caracteriza pela longevidade.
Pois não, amigo leitor, Sob Eros e Thanatos é
uma obra recheada de gente. De pedaços de vida e de pedaços de alma que são de
todo mundo, no mundo todo. Nenhum texto que fale de outro texto diz mais sobre
o texto em questão. Ou seja: a leitura destas impressões não substitui a
leitura dos contos de Giselda Medeiros, todos ricos de conteúdos mentais
universais. Independente do que se escreveu ou do que se não disse sobre, o
leitor precisa folhear Sob Eros e Thanatos, porque o crítico (jamais
disse sê-lo) não tem razões a pedir, a contista não tem contas a prestar, pois
a arte (os contos de Giselda Medeiros são arte) dispensa rédeas, regras e
mordaças.
Que sem mordaça, teorias e regras, continue Giselda
Medeiros criando suas histórias, com riqueza e versatilidade dos meios verbais.
Dias da Silva
Editor de BINÓCULO – caderno de leitura
Membro da Academia Lavrense de
Letras
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