segunda-feira, 30 de junho de 2014

EVOCAÇÃO DE LUSTOSA DA COSTA (1)


Vianney Mesquita - o Autor 

É melhor o pouco da memória do que o muito do esquecimento. (Lewis Howard Latimer. * Chelsea-Mass., 04.09.1848; + Nova Iorque-NY, 11.12.1928).

Deparamos, na estante, Sobral – Cidade das Cenas Fortes, um dos 28 trabalhos em livro do nosso ex-professor na Universidade Federal do Ceará, na década de 1970 – disciplina Cultura Brasileira – imortal Francisco José LUSTOSA DA COSTA, por quem nutríamos crescida admiração, tanto na qualidade de pessoa como de intelectual de escol e cronista bem apessoado nas letras em quase todos os seus gêneros.
Aportou-nos, pois, à evocação a ideia de que, dos representantes da inteligência cearense nos diversos espaços do conhecimento, sem qualquer hesitação, o jornalista e acadêmico Lustosa da Costa (Cajazeiras-PB, 10.09.1938 – Brasília-DF, 03.10.2012) é o que mais conservou fidelidade à Terra Sobralense, onde viveu e formou o caráter de homem sério e formulou boa parte de sua constituição intelectual.
Escasso era o dia – se é que houve este – em que o Autor de Vida, Paixão e Morte de Etelvino Soares deixava de comentar qualquer coisa acerca de Sobral, desde Brasília, na sua coluna do Diário do Nordeste, evento demonstrativo de sua benquerença à pátria (2) de tantas pessoas ilustres a pontilharem nossa história.
A maioria de seus livros, vasta produção edificada no curso de muitos janeiros, tem a Cidade de Dom José Tupinambá da Frota como móvel principal do enredo, sempre carreando episódios do passado ainda não tocados pelos investigadores dos feitos locais, ao sobrepor os faustos históricos do ativo intelectual alencarino, a igual tempo em que elasteceu a memória de Sobral/do Ceará com matéria-prima histórica de qualidade indiscutível.
Adiu-se ao seu bem-querer peculiar pela Zona Norte o consistente substrato intelectual, haurido, jamais (3), em Sobral, no que respeita à prima base de acumulação de sua larga cultura, integralizada em Fortaleza, noutros cantos do País e na Europa. Por tal pretexto, seus escritos são esteticamente agradáveis e os argumentos - porquanto vazados em fontes idôneas - restam incontestáveis, fatos que concedem aos seus escritos o encanto da Arte Literária e o estatuto de veracidade histórica.
Eis, pois, que este sobralense honorário veio trazer (como o fez noutros ensejos, também) o mencionado Sobral – Terra das Cenas Fortes – cujo palco é, de novo, a Princesa do Norte e, feitas artistas, as pessoas da Cidade, achegando ao estoque de fatos mais matérias para nos ilustrar e estear a tarefa dos operários da cultura, representados pelos investigadores.
 Foi, por conseguinte, mais uma ocasião de enlevo para quem estima Sobral a da publicação, com lançamento, do prefalado livro (Fortaleza: ABC, 2003), rebento da diligência deste emérito investigador, que tanto bem dedicou à urbe pela qual nutria imensa afeição e a ela se apegou com igual firmeza.
Pela via do “e-eternidade”, mandamos o abraço particular e nossa manifestação de saudade ao imenso Escritor de Amor em Tempo de Seca e estimado ex-professor. Aos sobralenses, pelas páginas deste jornal, parabenizamos pelo que receberam em matéria de Literatura da pena refulgente deste jornalista que percorreu livremente as trilhas da cultura em qualquer lugar do Brasil e d’alhures.

N O T A S
(1) Texto inédito, escrito em 2003, na oportunidade em que foi feita a publicação e lançado o livro no Ideal Clube, em Fortaleza-CE. Agora foi ligeiramente modificado para se proceder à atualização.
(2) A fim de que não pairem dúvidas, pátria tem aqui como uma de suas acepções [...] 2 a parte do país em que alguém nasceu (HOUAISS; SALLES VILLAR, 2005) , de modo que pátria não é apenas a nação, o país onde alguém veio ao mundo. Nossa pátria, ou seja, local onde nascemos, v.g., é Palmácia-CE.
(3) Apreciamos o emprego de JAMAIS como advérbio de modo, não advérbio de tempo. Aqui é aplicado no mesmo sentido de especialmente, particularmente, principalmente, mormente etc.


Lustosa da Costa - de imperecível memória

quarta-feira, 25 de junho de 2014

POEMA MOTIVOS - 4


Poeta, gosto do teu verso!
 Espelho de tua alma, ele é tua aventura,
 lírico reflexo dos murmúrios que vêm de tua voz.
Gosto da melodia sensual que deles se desprende,
ímã de sensibilidade de um poeta
ora timidamente criança,
ora amante afoito em seu ofício.
Mas, sabes, poeta? Vejo em teu verso
um Prometeu acorrentado
buscando um amor que vive a lhe escapar...
E sabes que esta é a sina do poeta:
do nada, simplesmente, sentir que tem o tudo
ou tendo o tudo, sentir que não tem nada!    

Giselda Medeiros

sexta-feira, 20 de junho de 2014

UM ENSAIO DE VIANNEY MESQUITA


ESTRUTURA DO SONETO Aos Pesquisadores Científicos

Vianney Mesquita*

A ciência é o cemitério das ideias mortas (Miguel de Unamuno y Jugo. * Bilbao, 29.09.1864; + Salamanca, 31.12.1936).

O poema seguinte foi elaborado na grade métrica do soneto, ideação poética de quatro estâncias - dois quartetos e dois tercetos, perfazendo catorze versos – com várias possibilidades de localização das rimas.
 Constitui homenagem àqueles que, diuturnamente, buscam respostas para as manifestações precisas da Natureza e de seus entes, sob a totalidade de ângulos de exame, configuradas na atividade científica, isto é, a procura atentiva e aprofundada de algo que não é notório, ou cujo conhecimento, deseixado de profundez e explicações plausíveis, é pautado na chamada communis opinio ou senso comum.
Sejam benditos os pesquisadores
Com seus rigores a buscar verdades;
Capacidades de interlocutores.
E de ouvidores de obscuridades.

Ao perquirir tão insondáveis fatos,
Cujos relatos pedem teorias,
Por essas vias, os feitos transatos
Têm, mais que atos, metodologias.

Neste exercício de sabedoria,
Ao revelar seus faustos de vivência,
Tranquilidade e douta teimosia,

É demonstrado em toda a percuciência
Extasiando o mundo, que aprecia
Um vivaz operário da ciência.

O entrecho poético ocorreu sob inspiração do relatório final da primeira pós-graduação stricto sensu da hoje professora doutora Maria MARLENE Lopes CIDRACK (Educação em Saúde - UNIFOR), detentora de uma cátedra de membra-titular (*) da Academia Cearense de Odontologia.
 Para obter o título de mestre (ela é mestrA, mas o título é de mestrE), compôs um verdadeiro paradigma de ensaio acadêmico, o qual muito me impressionou, a igual do ocorrido há quatro anos, quando defendeu tese de doutoramento na Universidade Federal do Ceará – Faculdade de Educação, com base na história do antigo SAPS, no Jacarecanga-Fortaleza (Escola de Nutrição Agnes June Leith),  concedendo ensejo à publicação do livro Visitadoras de Alimentação, editado pela Universidade Federal do Ceará (Edições UFC).
A estrutura métrica desde soneto assenta em versos decassilábicos portugueses quase-sáficos, com ictos na quarta, às vezes na oitava, e na décima de cada linha das duas primeiras estâncias. Nestas, as rimas estão nos primeiros com os terceiros e nos segundos com os quartos versos.
 Usei, no feitio desta composição supostamente petrarquiana (Francesco Petrarca -1304-1374), de não consoar os quartetos – o que representa uma opção autoral – porém é de relevância proceder a esta consonância.
 Entrementes, nos trísticos, o primeiro verso do primo terceto rima com o seu terceiro e com a segunda linha do segundo. Por sua vez, o segundo verso do primeiro trístico faz rimas com o primeiro e o terceiro do segundo terceto, ao passo que o primeiro e o terço versos do primeiro grupo de três corresponde em som rimado ao segundo verso do derradeiro terceto.
Destaco, neste comenos, o emprego da rima encadeada – atualmente bem mais rara – nas linhas versificadas das estrofes quádruplas, o que confere mais estesia à composição.


(*) Embora de lícita aplicação, membra é feminino muito pouco empregado no Brasil. 

terça-feira, 17 de junho de 2014

OUTSIDER – O HOMEM DO LADO DE FORA - POEMA DE SÉRGIO MACEDO


OUTSIDER – O HOMEM DO LADO DE FORA.

Só suportava a vida
Quando não estava nela.
E não era comum essa viagem.
O amigo se acomodou melhor na ausência.
Na sua ausência preferida:
A ausência de si mesmo em si.
Criou na ausência, outro ser
Criou na ausência seu habitat, mais que natural
Seguro, como somente a ausência pode ser segura.
Meu amigo não domava fadas nem demônios
Nunca gravou na pedra seu epitáfio
Nunca teve gavetas, nem atalhos,
Negou seus aniversários
aos da vida.
Capitulou diante do primeiro Evereste que
Encontraria. Capitulou.
Nunca teve boa impressão da vida,
Nunca a pressionou.
Os filhos nunca foram, pois não vieram.
Não se deixou conhecer pelo mundo
Mas também não se encontrou
Seus olhos miravam em paralelo
Para muito além do infinito
Encontrou um confidente:
A ausência da luz
Nunca teve rota de fuga,
Nas ausências não há riscos
Meu amigo, finalmente partiu
Vivendo de ausência,

Permanece eterno entre todos poucos nós.

Sérgio Macedo

quinta-feira, 12 de junho de 2014


Andrômeda e a Lua

Oh, Andrômeda, princesa de sorte extrema
Que no teu encanto sofreste as agruras
Da inveja e da luxúria de outras ninfas
Para ser imolada pela alma dos humanos.

E no caos do pavor da ameaça da morte
Entre um monstro saído das entranhas do mar
E um rochedo que a emparedava para a desgraça fatal
Tuas correntes foram quebradas para viver um grande amor.

Sob a luz do luar, na praia de Poseidon
Perseu, guerreiro dos mais fortes
Trazia em troféu, a górgona Medusa
Sob a luz do luar e o brilho das rochas
Enfrentou em um ímpeto de bravura
A sangue frio, o monstro marinho.

E por amor, Andrômeda, foi transportada
Para o infinito etéreo de uma constelação ímpar
Constelação das estrelas enamoradas
E como estrela ninfa, empresta a sua luz
Para que a lua incandescente
Embebede os poetas com tamanha melancolia.

Andrômeda, donzela de beleza tão presente
Dos deuses, presente para os pobres mortais
Que vislumbram cheios de esperança o firmamento
E vêem à noite, frente a frente
Andrômeda, linda e nua
E a lua, serena, seduzindo os poetas.

Nesse instante, o céu enfeita-se, reluzente na noite escura
E desfigurada, a solidão, amedrontada, foge de Andrômeda
E se entrega a orvalhada e pálida lua.

Lila Xavier

domingo, 8 de junho de 2014

POEMA DE ANO NOVO - VINICIUS DE MORAES


Poema de Ano-Novo

(Vinicius de Moraes)


É preciso que nos encontremos diante do amor como as árvores fêmeas cuja raiz é a mesma e se perde na terra profana


... É preciso... a tristeza está no fundo de todos os sentimentos como a lágrima no fundo de todos os olhos
Sejamos graves e prodigiosos, ó minha amada, e sejamos também irmãos e amigos.


É preciso que levemos diante de nós o retrato das nossas almas como se fôssemos a um tempo a Verônica e o Crucificado
Eu sou o eterno homem e hoje que a dor fecunda o tempo eu sinto mais que nunca a vontade de fechar os braços sobre a minha miséria.


Fiquemos como duas crianças pensativas sentadas numa escada - todos serão os peregrinos e apenas nós os contemplados.


Lêda Maria, em sua festejada Coluna, do Jornal O Povo do dia 22 de março de 2014, assim, registrou a festa de LANÇAMENTO de "A Silhueta das Areias", do Médico e poeta JOSÉ TELLES, ocorrido em grande Estilo no dia13 deste mês :

"A Noite de LANÇAMENTO DO LIVRO do Médico e poeta José Telles, A Silhueta das Areias, coletou as mais Belas Palavras de Juarez Leitão, apresentando autor e obra e as Emoções de Telles, cercado no Ideal Clube da Família e dos Fiéis amigos. Ali , também "uma Cidade abraçava uma enseada grávida de aconchego." Afeto e Admiração entregues a quem FAZ da VIDA uma Busca permanente do Amor ". 




PARABÉNS, TELLES!


sábado, 7 de junho de 2014

‘Discípula de Paulo Freire assassina Machado de Assis’


O esplêndido artigo do jornalista José Maria e Silva é leitura obrigatória: ‘Discípula de Paulo Freire assassina Machado de Assis’

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Discípula de Paulo Freire assassina Machado de Assis, informa o título do artigo publicado pelo jornalista José Maria e Silva no jornal Opção, de Goiânia. “Em sua arbitrária simplificação de Machado de Assis, em que comete erros primários de interpretação de texto, a escritora-empresária Patrícia Secco embrutece o espírito do leitor ao falsear o mestre e descaracterizar seus personagens”, emenda o subtítulo. Impecável na forma e brilhante no conteúdo, a análise demonstra que a pretendida “adaptação” de O Alienista é um crime contra a literatura, um insulto ao escritor brasileiro, uma vigarice lucrativa e um monumento à imbecilidade. (AN)
JOSÉ MARIA E SILVA
Localizado nas proximidades do Viaduto do Chá, que, desde a inauguração em 1892, se tornou, durante muitos anos, o principal cartão postal da cidade de São Paulo, o Vale do Anhangabaú será palco, em junho próximo, de um evento literário inusitado — um túnel construído não por concreto, mas por 60 mil livros. Trata-se do lançamento da nova edição de uma das mais importantes obras da língua portuguesa de todos os tempos, a novela O Alienista, de Machado de Assis, que, depois da morte do escritor em 1908, separou-se de Papéis A­vulsos, o volume de contos em que fora originalmente publicado em 1882, e se tornou um livro autônomo, traduzido em vários idiomas. Mas não se trata exatamente da obra-prima de Machado — o que o leitor vai encontrar nesse lançamento faraônico é uma adaptação de O Alienista, coordenada pela escritora Patrícia Secco e patrocinada pelo Ministério da Cultura, por intermédio da Lei Rouanet.
“Entendo por que os jovens não gostam de Machado de Assis. Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso”, disse Patrícia Secco, em 4 de maio último, numa entrevista ao jornalista Chico Felliti, da Folha de S. Paulo. Proprietária da Secco Assessoria Empresarial S/C Ltda., que juntamente com sua pessoa física já teve aprovados no Ministério da Cultura projetos que somam cerca de R$ 10 milhões captados, Patrícia Secco produz literatura infanto-juvenil em ritmo industrial, com mais de 200 títulos publicados, a maioria com temas da moda, como meio ambiente, direitos humanos e inclusão social. Com o propósito de facilitar a leitura de quatro clássicos da literatura brasileira, Secco pedira autorização ao Ministério da Cultura para captar R$ 1,53 milhão; por incrível que pareça, foi autorizada a captar R$ 1,45 milhão, ou seja, quase o montante que havia pedido para seu projeto. Na prática, conseguiu captar uma cifra milionária — R$ 1,039 milhão — para produzir dois livros a serem lançados num mesmo volume: O Alienista, de Machado de Assis, e A Pata da Gazela, de José de Alencar.
A princípio, a ideia de adaptar um clássico não é necessariamente condenável, especialmente se for para crianças. As adaptações de clássicos da literatura — começando pela Bíblia — devem ser tão antigas quanto o ato de ler. Em sua já clássica Uma História da Leitura, o argentino-canadense Alberto Man­guel conta que, em 1387, John de Trevisa, que estava traduzindo do latim para o inglês a epopeiaPolychronicon, do monge beneditino Ranulf Higden (c. 1280-1364), resolveu fazê-lo não em versos, mas em prosa, pois sabia que o público já não queria ouvir uma recitação pública da obra (que, por sinal, se tornaria muito popular no século XV), preferindo lê-la diretamente. Da mesma forma, a Divina Comédia, de Dante Alighieri, originalmente escrita em versos, mereceu adaptações em prosa e versões condensadas para crianças, que exploram o viés aventureiro de sua viagem ao Inferno, Purgatório e Céu, transformando-o numa espécie de Julio Verne do espírito.
Uma das primeiras justificativas para se adaptar uma obra é, sem dúvida, sua extensão. Poucas crianças são capazes de ler um romance ou uma epopeia que se estende por mais de 500 páginas. A boa adaptação é uma espécie de resumo que tenta extrair a essência da obra sem desvirtuá-la. Carlos Heitor Cony, que adaptou diversos clássicos para o público infanto-juvenil, como Dostoievski, Melville, Mark Twain, Dumas, Gogol, Eça, Manoel An­tônio de Almeida e Julio Verne, ao ser indagado numa entrevista à revista “Cult” se reescrevia ou resumia os livros, respondeu: “Era uma condensação. Eu eliminava pontos mortos, alguns diálogos, detalhes técnicos. Deixava o texto mais denso. Mas preservava a história, o clima e principalmente a expectativa”. Cony foi taxativo: ”O bom adaptador não falseia o original”.
Facilitação de Machado nega o escritor
Infelizmente, Patrícia Secco falseia Machado de Assis. Além de lhe desfigurar o estilo, ela o emburrece. Sua adaptação é um retrocesso, que sacrifica até os avanços linguísticos do estilo machadiano, já ousadamente próximo da linguagem coloquial, numa antecipação das vanguardas do modernismo que só iriam se consolidar no Brasil quase meio século de-pois. A autora esqueceu-se de que Machado, assim como Borges, Beckett, Graciliano, não dá para ser adaptado em prosa sem que se perca a essência de sua arte. A obra machadiana é basicamente linguagem. Em seus romances, não há enredos rocambolescos nem profusão de personagens, como há em Homero, Cervantes e nos clássicos românticos. Mesmo O Alienista, talvez o enredo mais movimentado de toda a sua obra, depende substancialmente da linguagem, pois é nela que moram a argúcia e a ironia do conto.
Para justificar sua adaptação, Patrícia Secco recorre a afirmações demagógicas. “Estou horrorizada. É muito triste pensar que algumas pessoas acham que Machado de Assis, o mestre da literatura brasileira, não pode ser lido pelo sr. José, eletricista do bairro do Espinheiro, que, apesar de gostar de ler, não cursou mais que o primário, ou pelo Cristiano, faxineiro de uma farmácia de Boa Viagem, que não sabe nem mesmo o significado da palavra boticário”, disse a escritora-empresária à repórter Maria Fernanda Rodrigues, do Estadão, em matéria de 9 de maio último. Ora, quem disse que um faxineiro não pode compreender Machado de Assis? Se fosse assim, o próprio Machado — descendente de agregados e ex-escravos, somente com o ensino primário — nem existiria. Foi justamente porque em seu tempo não existia uma Patrícia Secco facilitando-lhe Camões, Vieira e Almeida Garrett que o Machadinho do Morro do Livramento embebeu-se dos clássicos, aprendeu francês sozinho e não apenas se tornou capaz de compreender os mestres da literatura universal como até mesmo se tornou um deles.
Com sua adaptação de O Alienista, a escritora-empresária Patrícia Secco destrói a universalidade da literatura de Machado de Assis com a pequenez ideológica da pedagogia de Paulo Freire. Foi o criador da “Pedagogia do Oprimido”, uma espécie de marxismo de autoajuda, quem consagrou a tese pedagógica de que o aprendizado é um epifenômeno das circunstâncias materiais e é somente a partir delas que se pode alfabetizar uma criança e despertar-lhe a consciência. O pedagogo brasileiro foi um grande admirador de Mao Tsé-Tung e, assim como o monstruoso comunista chinês mandava os lavradores arrancarem até as flores nativas, porque eram inúteis no universo do trabalho, Paulo Freire também arranca as palavras burguesas da cartilha do trabalhador, determinando a alfabetização a partir das tais “palavras geradoras”, como “tijolo”. É o que chamo de pedagogia análoga à escravidão — o filho do lavrador deve ter os olhos presos ao chão e está proibido de ouvir estrelas.
Patrícia Secco professa a mesma filosofia: se o faxineiro da farmácia não sabe o que é “boticário”, que se arranque então essa maldita palavra dos textos clássicos. Nunca ocorreu a ela que seria muito mais fácil, barato e respeitoso oferecer um dicionário ao faxineiro? Aliás, um trabalhador que resolva ler O Alienista — e isso está longe de ser raro — nem precisará de dicionário para descobrir o significado dessa palavra. O próprio conto, que sempre associa o boticário Crispim Soares a remédios, já lhe oferece a resposta. Além disso, tão logo veja a palavra no texto, o faxineiro irá se lembrar de que existe uma rede de perfumaria com esse nome e, por associação de ideias, poderá lembrar-se da palavra “botica” que pode ter ouvido a um parente mais velho. Caso não disponha de um dicionário em casa, o faxineiro machadiano sempre poderá consultar uma pessoa letrada de seu meio, parente ou um conhecido, que se não for capaz de sanar sua dúvida, saberá onde encontrar a resposta. Ou Patrícia Secco acha que só existe vida inteligente em seu meio social e que nas classes pobres não há ninguém capaz de trocar ideias com um faxineiro interessado em literatura?
Censo de 1872 abalou a literatura brasileira
O psicólogo Yves de La Taille, professor da USP e autor do livro Limites, considera que os limites morais comportam três dimensões, uma das quais significa desafio — uma pessoa, além de respeitar limites em face dos direitos dos outros e de impor limites em defesa de sua intimidade, deve também superar limites, o que significa superar a si mesma, buscando a maturidade e a excelência. É tudo o que Pa­trí­cia Secco não quer do leitor, com sua simplificação dos clássicos. Nin­guém aprende sem esforço próprio, recebendo tudo de mão bei­jada. Graciliano Ramos começou a ser escritor quando se sentiu de­safiado pelas mesóclises daCarta de ABC, do lendário A­bí­lio César Borges, o Barão de Ma­caú­bas, que trazia a máxima “fala pouco e bem, ter-te-ão por al­guém”. A frase o levaria a indagar à sua meia-irmã Mocinha se “ter-te-ão” era um homem. Co­mo Mo­ci­nha, a adolescente se­mial­fabetizada que o ensinou a ler, também não tinha ideia do que fosse aquilo, o me­nino Gra­ci­li­ano, enfezado vi­vente das Alagoas, criado a cascudos e beliscões, teve que descobrir so­zinho, devorando, antes dos dez anos, a prosa romântica de José de A­lencar, bem mais distante da linguagem comum do que a linguagem coloquial de Machado de Assis.
Ao se dar conta da indignação que sua proposta suscitou no País, desde um abaixo-assinado contrário até artigos e editoriais — Patrícia Secco publicou na Folha de S. Paulo, no dia 13 de maio, uma defesa de sua adaptação. O título do artigo não poderia ser menos machadiano: “Machado não gostaria de permanecer desconhecido para quem não lê”. Que afirmação mais esdrúxula! Ma­chado, revolucionariamente, sabia-se texto e, como tal, sabia-se também de­pendente do leitor. Em sua tese Os Leitores de Machado de Assis (Editora da USP, 2004), o professor da USP Hélio de Seixas Guimarães chega a sustentar que a obra machadiana foi influenciada pelo Censo de 1872 (o primeiro realizado no Brasil e divulgado em 1876), ao revelar que apenas 18,6% da população livre e 15,7% da população total, incluindo escravos, sabiam ler e escrever. “A tomada de consciência da escassez de leitores, problema que se inscreve de maneira cada vez mais radical em seus romances, parece-me fator relevante para ajudar a guinada que o escritor imprimiu a sua carreira”, escreve Seixas Guimarães.
Mas Machado de Assis, como sociólogo e psicólogo nato, também estava preocupado com os que não sabem — ou não querem — ler, oferecendo-lhes não a literatura-texto, mas a literatura-instituição, encarnada na Academia Brasileira de Letras, que detém até o monopólio legal da língua, tão grande é a sua importância. Aliás, ao contrário do que pensa Patrícia Secco, isso torna Machado de Assis o escritor mais conhecido pelos que não sabem — ou não querem — ler, nomeando ruas e escolas e simbolizando as letras nacionais da mesma forma que o desgrenhado Be­ethoven simboliza a música para quem nunca pisou numa sala de concerto e só conhece da música erudita o eterno “tchan-tchan-tchan” da Quinta Sinfonia. No próprio modo de composição da ABL, que aceita políticos e notáveis travestidos de escritores (como o Barão do Rio Branco, Marco Maciel e Ivo Pitan­guy), Machado de Assis revelou toda sua engenharia político-institucional, dando à literatura brasileira uma dignidade social que ela jamais poderia alcançar numa nação de analfabetos se continuasse sendo produzida em bares, por uma despreocupada geração de boêmios.
E quando procurou fazer da literatura brasileira também uma instituição social descarnada do texto, capaz de chamar a atenção da sociedade por outros meios, Machado de Assis não estava pensando exatamente nas camadas populares da nação — estou certo de que ele pensava, sobretudo, na preguiçosa elite nacional, que, mesmo sabendo e podendo ler, não lia, nem em seu tempo, nem hoje. Machado estava consciente de que, mesmo entre as elites, eram poucos os que tinham o habito da leitura, tanto que seu grande amigo José de Alencar se queixava de que o público conhecia mais O Guarani pelo teatro do que pelo texto do romance em si. Portanto, Patrícia Secco revela todo o seu preconceito contra os pobres quando cita uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo mostrando que 58% dos brasileiros não leram nenhum livro nos últimos seis meses e, logo em seguida, afirma que, “por trás desses números existem rostos e vidas”, mas ao desvendá-los só se lembra de pessoas como “Seu Roberto, motorista de táxi, o Cristiano, caixa da farmácia da esquina, a Dona Nice, copeira do escritório”, pois, segundo ela, “eles são não leitores”.
Ora, só eles? E quantos são leitores entre as elites econômica, social e política do País? Essa preocupação perpassa a obra de vários críticos ao longo do tempo, como José Ve­ríssimo, Sílvio Romero e Otto Maria Carpeaux, que se angustiavam com o grande número de profissionais liberais, como médicos, engenheiros, advogados, professores e outros profissionais de nível superior, que passam ao largo da literatura, limitando-se às leituras técnicas de suas respectivas áreas e reservando o tempo livre para outras formas de lazer, que nada têm a ver com as letras. Por isso, quando se pensa em pobre como sinônimo de não leitor, o que se quer, no fundo, é uma justificativa para arrancar dinheiro dos cofres públicos.
Simplificar livros agrava o problema da leitura
Linguagem difícil nunca foi o maior empecilho à leitura. Mário de Andrade, com seu espírito galhofeiro, disse que para se gostar de Machado de Assis é preciso já nascer velho. Eu vou mais longe: para se gostar de literatura é preciso envelhecer cedo. Por isso, o Eclesiastes diz que “o muito estudar enfado é da carne”. Em nenhuma época ou lugar, a leitura foi a mais popular das formas de lazer. A literatura é a mais reflexiva das artes e a maioria das pessoas abomina reflexão, que, para muitos, rima com depressão. Isso ocorre também com a música erudita. Quantas pessoas, ricas ou pobres, formadas ou não, tão logo se sentem tocadas por um concerto de Mozart, uma sonata de Beethoven, logo tendem a afastá-las dos ouvidos, pedindo uma “música alegre”, sob a alegação de que aquele tipo de música lhes provoca tristeza?
Creio que isso ocorre com qualquer povo, só que, no Brasil, fugir da reflexão como o diabo foge de cruz não é uma característica só das massas, mas também das elites. Uma frase de Machado de Assis talvez explique esse fenômeno: “A verdadeira ciência não é a que se incrusta para ornato, mas a que se assimila para nutrição”. Infelizmente, no Brasil, a educação nunca foi um meio de edificação intelectual e moral do indivíduo, como pregava Machado, mas um salvo-conduto para o sucesso social. Nas nações que levam a sério o conhecimento, o indivíduo primeiro busca o saber e, como consequência, conquista o diploma. No Brasil dá-se o contrário: o sujeito busca avidamente o diploma e, se sobrar tempo, vai à cata de algum conhecimento para fingir que não é de todo ignorante. Por isso, lê-se pouco no Brasil, mesmo entre a gente letrada: ler exige uma posição de sentido do espírito — que é cada vez mais rara numa nação que sempre desprezou o mérito.
Simplificar livros não resolve o problema — pelo contrário, agrava-o. Iniciativas como a de Patrícia Secco abastardam o povo brasileiro ao impedi-lo de conhecer o verdadeiro Machado de Assis, sufocado por uma montanha de 600 mil falsificações de sua obra. Nesta semana que passou, dormi menos de três horas por dia, em média, varando as madrugadas na comparação — linha por linha — da sagrada escritura de O Alienista de Machado de Assis com o apócrifo de mesmo nome da escritora Patrícia Secco. Ao cabo dessa ingente labuta (que Secco, toscamente, “traduziria” por “ao fim desse grande trabalho”), faço minha a indignação de Alcides Vilaça, professor da USP: “Apresentar como sendo de Machado de Assis uma mutilação bisonha de seu texto não devia dar cadeia?” Sim, devia dar cadeia, sobretudo para os tecnocratas do MEC que torraram mais de R$ 1 milhão dos cofres públicos nessa falsificação grosseira de Machado de Assis.
Machado de Assis para consumo próprio
Nem se pode chamar de adaptação esse trabalho de Patrícia Secco. Em sua arbitrária simplificação de O Alienista, com graves erros de interpretação de texto, a escritora-empresária embrutece o espírito do leitor ao falsear o estilo de Machado de Assis, descaracterizar seus personagens e descontextualizar sua obra. Segundo ela própria contou a Chico Felliti, da Folha, a equipe que “descomplica” o texto é formada “por um monte de gente” (expressão dela, segundo o jornalista), entre eles a própria escritora e “dois jornalistas amigos”. É como pegar pintores de parede num bar e levá-los para restaurar a Capela Sistina. O resultado não poderia ser pior. Onde Machado de Assis escreve: “Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte”; Patrícia Secco traduz: “Uma curiosidade científica iluminou os olhos de Simão Bacamarte”. Além de destruir a musicalidade da frase, a troca de palavras assassina o sentido do texto: “volúpia” tem uma forte conotação sexual, imprescindível para se compreender a paixão de Bacamarte pela ciência, algo que se perde completamente com a palavra “curiosidade”. Além do mais, palavras como “volúpia” e “alumiar” não precisam de tradução: a primeira pode ser lida na Bíblia ou ouvidas em homilias católicas e pregações evangélicas e a segunda, em que pese fazer parte do repertório clássico da língua, é perfeitamente compreensível para qualquer lavrador que nunca frequentou escola, mas sabe perfeitamente o que é uma candeia alumiando.
A impressão que fica é que Patrícia Secco e sua equipe traduziram Machado de Assis para consumo próprio. Ou alguém imagina que uma pessoa esforçada o suficiente para ler um livro não vai ser capaz de compreender, com a ajuda do contexto da obra, palavras e expressões como “congregar”, “atarantado”, “estatelar-se”, “pessoa de consideração”, “déspota”, “laudas”, “demanda”, “estar em erro”, “arruaças e clamores”, “vereança”, “eloquência”, “aritméticos”, “abono”, “vestuário”, “gaiato”, “intuito”, “oficiou”, “lusitana”, “juiz-de-fora” e outras do mesmo nível? Pois todas essas palavras foram substituídas por sinônimos catados arbitrariamente no dicionário sem levar em conta o contexto da obra muito menos o estilo do autor. Analisei minuciosamente a adaptação de Patrícia Secco e hei de voltar a ela. Mas já adianto: trata-se de um caso clínico de analfabetismo funcional, digno de ser recolhido às dependências da Casa Verde de Simão Bacamarte. Em vários momentos, Secco e sua equipe não conseguem compreender o que Machado diz com sua peculiar clareza e desvirtuam completamente o original.
Machado de Assis escreve: “Simão Bacamarte começou por organizar um pessoal de administração; e aceitando essa ideia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos”. Patrícia Secco deturpa: “Simão Bacamarte começou organizando um pessoal de administração. Convencendo o farmacêutico Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos”. Reparem no absurdo: a adaptadora transforma o alienista num subordinado do boticário, a quem precisa convencer sobre a necessidade de uma administração em seu próprio manicômio. Em outro trecho, o Padre Lopes diz: “Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo”. A adaptadora reescreve: “Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, prejudica o juízo”. Chega a ser inacreditável essa troca da popularíssima expressão “vira o juízo” por “prejudica o juízo”, um barbarismo que deve ter revirado o estômago do primeiro verme que roeu as frias carnes do defunto Brás Cubas!
Deturpando o enredo e a história
Machado conta que, como D. Evarista não conseguia ter filhos, o Dr. Simão Bacamarte “fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial”. Entretanto, “a ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência, — explicável, mas inqualificável, — devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes”. Qualquer dona de casa sem nenhum estudo compreende que D. Evarista, por amor à saborosa carne de porco de Itaguaí, não quis fazer a dieta proposta pelo marido e, por isso, não conseguiu ter filhos. Agora vejam a versão analfabeto-funcional de Patrícia Secco: “[Simão Bacamarte] acabou por indicar à mulher um regime alimentício especial. A ilustre dama, que deveria se alimentar exclusivamente com a carne de porco de Itaguaí, não atendeu aos conselhos do esposo. E, à sua teimosia — explicável, mas inqualificável — devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes”. Ela simplesmente está dizendo que o alienista receitou uma dieta de carne de porco à esposa, quando foi o contrário.
Mais adiante, quando descreve a revolta dos Canjicas contra a Casa Verde, Machado de Assis narra: “Os dragões pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro”. Patrícia Secco estropia o texto: “Os soldados pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse. Mas, enquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro”. A adaptadora não faz ideia da conjunção “conquanto” e, em vez de recorrer a “embora”, a traduz por “enquanto”, transformado Machado em analfabeto. No mesmo episódio, o escritor diz que o capitão dos “dragões” mandou “carregar contra os Canjicas”. Patrícia Secco traduz “carregar” (que, no contexto, significa “investir contra”) por “disparar”, sem perceber que os dragões — como os “Dragões da Independência” de hoje — usavam espadas e não armas de fogo. Com isso, o leitor de sua adaptação vai achar que Machado de Assis fazia realismo mágico: uma tropa mete fogo na multidão e essa multidão arrosta as balas, sem medo da morte.
Uma das admiráveis qualidades do conto O Alienista é o cuidado com que a história aparece nele. Machado de Assis preocupa-se com os mínimos detalhes históricos e escreve que Simão Bacamarte era “o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”. Patrícia Secco corrige para “Espanha”, sem fazer a menor ideia de que, na época colonial em que se passa a história, a Espanha era oficialmente chamada de “Reino das Espanhas”. Em outro trecho, Machado diz que, para D. Evarista, ver o Rio de Janeiro “equivalia ao sonho do hebreu cativo”, sintetizando nessa expressão a sensação de exílio e confinamento que a acanhada Itaguaí produzia no espírito frívolo da mulher de Bacamarte. Patrícia Secco estraga a imagem, substituindo “hebreu cativo” por “judeu cativo”. Ela confunde os hebreus que se tornaram escravos no Egito e foram libertados por Moisés com os filhos da tribo de Judá que, já na terra prometida de Canaã, séculos depois, emprestariam o nome de sua tribo para todo o povo eleito. Se ao citar Dante, Machado tivesse dito, com precisão histórica, “poeta florentino”, não tenho dúvida de que Patrícia Secco iria corrigir para “poeta italiano”. Aliás, numa das raras e lacônicas notas de rodapé, a adaptadora faz isso: ela diz que Averrois é um filósofo e poeta “hispano-árabe”. É o mesmo que chamar Santo Agostinho de filósofo romano-argelino.
Por que Patrícia Secco e sua equipe cometem essa profusão de erros de extrema gravidade ao adaptar o conto de Machado de Assis? Sem dúvida, porque não estão à altura da tarefa. No fundo, a escritora e seus amigos jornalistas, a cada vez que buscam um sinônimo para um termo ou expressão do conto, estão traduzindo a obra para eles próprios e não para o eletricista, o faxineiro, o motorista de táxi, que precisam menos do que eles dessa facilitação. Para se ter uma ideia do quanto é absurda essa adaptação, Machado empregou o termo “transeuntes” e a adaptadora achou por bem substituí-lo pela expressão “os que por ali passavam”. Imagino Patrícia Secco ouvindo uma rádio AM do interior na década de 70, quando o Brasil era muito menos escolarizado do que hoje. Ela ficaria pasmada (ou “espantada” conforme sua tradução de Machado) ao se dar conta de que um dos grandes sucessos de Tonico & Tinoco, dedicado por peões de fazenda às suas respectivas namoradas, era a canção O Gondoleiro do Amor, um poema de Castro Alves, cantado pela dupla caipira ao som de violinos. Saudosos tempos em que uma dupla de lavradores elevava o povo até Castro Alves; hoje, gente como Patrícia Secco faz é rebaixar o povo quando dá a ele um Machado de Assis no nível de si mesma.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

COMENTÁRIO




O ORTÔNIMO, OS HETERÔNIMOS E A OUTRA COISA, NA CALIGRAFIA DO POLÍGRAFO LINHARES FILHO

Vianney Mesquita*

O que penso do mundo?
Sei o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

[Alberto Caeiro – heterônimo de PESSOA, FERNANDO Antônio Nogueira de Seabra  - *Lisboa, 13.06.1888; +Lisboa (Jerônimos), 30.11.1935].


Procedia a uma regulagem nas minhas (como eu) desorganizadas estantes, quando divisei A Outra Coisa na Poesia de Fernando Pessoa, do escritor polimático Linhares Filho, professor titular de Literatura Portuguesa da U.F.C. mestre nesta linha investigativa (Pessoa) e doutor no mesmo veio (Miguel Torga).
José Linhares Filho, de quem experimentei o prazer de assistir ao lançamento do broto intitulado Junto à Lareira Invisível, há poucos meses, é lavrense (da Mangabeira), como ocorrem ser Dimas Macedo, Batista de Lima, Josafá e Joel Linhares e Joaryvar Macedo, bem assim muitos autores de renome, procedentes desta fonte prolígera de pessoas de letras, cultura e ciência.
Tanto em razão de sua diversa e qualificada produção na poesia, ensaio e noutros gêneros de escritura, como, em particular, em decorrência dos estudos empreendidos em profundez acerca de Pessoa e Miguel Torga (Adolfo Correia da Rocha), LF é produtor apreciado, estudado e policitado no Brasil, Portugal e nas várias nações lusofônicas, razão por que constitui nome de referência terciária no ecúmeno literário nacional e mesmo ultrapassando os limiares patriais do idioma português.
Na releitura do mencionado clássico da ensaística literária, restou mais cristalina ainda (a leitura repetida tempos após é procedida sempre noutra perspectiva) a ideia de que descobrir lances novos, por exemplo, na produção de literatos da grandeza de Machado de Assis, Eça de Queiroz, José de Alencar, Fran Martins ou Fernando Pessoa não constitui labor no alcance das pessoas comuns, porquanto, se pensa, desarrazoadamente, suas obras já restam eficientemente dissecadas pelos mais eminentes analistas.
Desta sorte, depreende-se a noção de que a Arte, na sua acepção melhor, não é tão estreita ao ponto de se esgotarem valores latentes, e sempre haverá no seu recôndito entretons ainda intocados e que somente poderão ser devassados pela argúcia do estudioso exigente e fiel à pesquisa para descodificação perfeita da mensagem.
A Outra Coisa na Poesia de Fernando Pessoa, ora apreciada com visão renovada, diversa da leitura inaugural, não constitui, decerto, um livro a maior na bibliografia passiva do Lisbonense notável, conforme se poderia erroneamente supor a priori, pois LF percorre intimamente o discurso admirável do Poeta luso e, sine ira et studio, no frasear de Públio Cornélio Tácito, imagina, supõe, fotografa, conclui e explica, com a clareza do bom tradutor, as diversas facetas da obra do Autor de Mensagem.
Linhares Filho estabelece as relações entre o ortônimo e os heterônimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis; exprime singularmente as posições de Caeiro e Reis, bem assim o relacionamento de Campos-Caeiro; formula coerentemente as soluções idealista e realista no contexto pessoano, explicando, no que chamou solução realista, o infinito de Pessoa, o impossível de Reis e o realismo de Campos.
Linhares Filho, pois, no volume sob comento, deu continuidade ao seu fado de excelente escritor de ensaios, garantindo um lugar de destaque no concerto da crítica especializada; e, ao demostrar a personalidade multíplice do Escritor de Primeiro Fausto, arremata com o enfeixe maior de Pessoa – o empenho deste em compreender o mundo e atingir o ser.
O experimento literocientífico sob exame, por conseguinte, malgrado assunto espreitado amiúde por teóricos de toda parte, é uma vertente exata para quem tencionar proceder a incursões mais demoradas pela obra de Fernando Antônio Nogueira de Seabra Pessoa, em decorrência da absoluta originalidade das suas proposições.
Glória e paz e parabéns e vida longa ao excelso ensaísta e enorme cristão, ocupante de uma cadeira (a de Luís Antônio da Rocha Lima) na Academia Cearense de Letras, o lavrense José Linhares Filho !