sexta-feira, 31 de agosto de 2012

UM POEMA DE GISELDA MEDEIROS NA NOITE DA LUA AZUL

INDECIFRÁVEL
(para Rejane Costa Barros)
Será o meu amado um verde gesto,
inaudível palavra, não expressa,
um vento brincalhão entre os palmares
ou indormida pétala de rosa?

 Será o meu amado astuto barco
nas procelas  da vida a navegar
indiferente às ânsias, às esperas
e ao mormaço da tarde a declinar?

Será o meu amado aflita gota
do espelho d’água que reflete o céu
com seu cortejo de anjos e de nuvens?

Não! O meu amado é alvo pensamento
a correr sobre as dunas da poesia,
trazendo-me as areias do lirismo.



sábado, 18 de agosto de 2012

BELO POEMA DE HERMÍNIA LIMA



CECÍLIA MEIRELES



Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz. Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refelectidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes um galo canta. Às vezes um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz. Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

sábado, 4 de agosto de 2012

DE OLHOS ENTREABERTOS


ENSAIO
A poética de Aíla Sampaio
04.08.2012

A vida nunca se faz plena como se um passe de mágica estivesse por trás das aparências

A eternidade não depende do tempo, mas do desejo com que buscamos possuir a plenitude das coisas. Existir não é o mesmo que viver, assim como escrever é possuir o indizível da língua, e, assim, traduzir também o seu mistério, em face da sua transcendência. De Olhos Entreabertos, os escritores costumam conversar com as estrelas, representar o brilho dos cristais e acolher em seu texto a solidão dos que vegetam enquanto o cosmos agoniza. Leia-se o poema "Tela":

(Texto I) O ato da criação literária é o mais atomizado de todos os processos de representação da arte; é o mais denso e o mais sagrado de todos os prazeres do corpo, e é a forma mais sólida de representação do mundo perante os apelos da história. A pós-modernidade compreende o oblívio de Deus substituído pela ilusão do Capital, como se a mercadoria fosse capaz de intuir o sentido supremo do sagrado; como se a estética do gosto fosse superior à estética da arte, como se o sagrado fosse assim, capaz de sucumbir diante da sedução do efêmero.

A arte da palavra

As marcas e as grifes são apenas miçangas ou enfeites de uma civilização em ruína, esmagada pelo consumo e pela tentação do capital e das suas formas miseráveis de alienação e acumulação. Vejam-se, então, os versos de "Desvarios de maio":

(Texto II)

Assim sendo, urge que a arte, a arte mais sutil e prazerosa, a arte mais pura e a mais sofisticada assumam o seu lugar no discurso do caos, para que a linguagem poética e a sua liturgia possam reconquistar o espaço soberano do texto. A representação da poesia nunca perdeu o seu lugar na história. Na era em que o homem mais decididamente mergulhou na guerra, em nome da ilusão do mito, Ulisses ressurgiu como o herói de todas as idades; e quando o céu e o inferno se fundiram na idade escura da magia, Dante segurou a mão de Virgílio e nos devolveram, por fim, a claridade, o sentido poético da alegoria e a escansão do verso refletido. Os tempos de enfrentamento da linguagem agora são outros, mas a poesia está sutilmente em toda parte. Poetas existem no mundo de todas as maneiras, e poetas ruins é o que não falta em todos os quadrantes do globo. O Ceará é uma terra povoada de muitos escritores e de Academias que não valem o preço com que foram feitos os seus estatutos, mas é também uma terra de veras escritoras, da estirpe de Ana Miranda, Marly Vasconcelos, Natércia Campos, Inez Figueredo, Giselda Medeiros e Tércia Montenegro, dentre outras.

A essa elite de escritoras de talento pertence o nome de Aíla Sampaio, que conheci ainda por ocasião da sua estreia, e cuja evolução venho acompanhando com respeito e curiosidade, porque profícua a sua produção, porque profundos os seus conhecimentos, porque sincero e visceral o seu compromisso com a palavra ritmada e com a palavra fundadora do belo. Como, por exemplo, nos versos de "Silêncio antigo": (Texto III)

Depois de chamar a atenção do público, com a sua tese de mestrado sobre os mistérios de Lygia, e de esquadrinhar as vozes da sua escritura sutil e polifônica, Aíla entrega-se agora à sedução da poesia, abrindo o seu baú de desejos e expondo totalmente aos ventos a vertigem fatal da sua poética fulgurante. E, por entre curvas e desvios, Aíla Sampaio vai construindo a sua arte, tecendo as suas teias, e mergulhando na sua solidão compartilhada, entretendo os seus leitores com a força aliciante da palavra e da sua beleza metafórica.

Das temáticas

A poesia de Aíla Sampaio, nesse seu livro, de título sugestivo, faz-se a um só tempo verbo e escansão, solidão e reticência, e purgação da morte em face da libido do tempo.

O amor, a comunhão a dois e a busca incessante de Eros, para aplacar os desafios da vida e os sentidos cambiantes do corpo, se entrelaçam, nesse livro novo de Aíla Sampaio, como se fossem os seus esteios de maior destaque. Leiam-se os versos do poema "De outro tempo": (Texto IV)

Eis, portanto, De Olhos Entreabertos (Fortaleza, Editora Sponti, 2012), um livro cuja linguagem nos seduz, um livro que dignifica a sua autora e que não desmerece a ensaísta. E que faz da sintaxe do desejo (e também do verso refletido) o espaço poético da arte literária.

O QUE ELES PENSAM

"Na poesia de Aíla Sampaio, uma das marcas mais expressivas reside no cultivo de metáforas entrelaçadas a impressões sensoriais".

CARLOS AUGUSTO VIANA
Escritor

"Nesse livro, o tema do amor, explorado sob múltiplos ângulos, abre caminho para a reflexão sobre a própria fragilidade do ser humano".

JOSÉ TELLES
Poeta

Trechos

TEXTO I

O tempo costura a vida com pontos de cruz, / fazendo desenhos multicores no véu dos dias. / Na tela em que meu destino foi bordado, / não há manchas de dedos / nem frouxos alinhavos / desfazendo a harmonia. / Nasci, certamente, das bordadeiras de sonhos / que tecem lenços azuis todas as manhãs / para que a realidade, com seu duro fardo, / não pesponte escuridão onde o traço é de luz.

TEXTO II

Desse olhar esgarçado sobre o poente, / dessa lamúria que é o vento antes da chuva, / fiz a tarde com seus desvarios de maio. /// Não fosse hoje um domingo qualquer / eu teria motivos para não ler nada / e veria TV, bandeira branca a meio-palmo / e mansidão para seguir as procissões de Maria. / Mas não é assim o meu desenho / tão fácil de distinguir as cores e as linhas / rascunhadas. /// Surpreendem-me vontades de sesta, / sono profundo ao meio-dia / e saudades que não posso mais matar. / Tanta abstinência, tantas orações / e o coração não sara... / continua a sangrar ao menor esforço / e a me matar aos poucos todos os dias.

TEXTO III

Há sempre uma casa / com seu silêncio antigo / e seus conhecidos fantasmas / a nos habitar. / Há sempre a memória / de um amor interdito, / a dar a ilusão / de que a felicidade está / apenas / no que poderia ter sido. /// O tempo vivido desliza, / guardando abismos que / devoram a carne do tempo. / O que nos pertence / é apenas o presente / e a certeza de que eterno / é somente o que não se realiza.

TEXTO IV

Essa casa desabitada / perdida no abandono dos ventos / (que sopram sem direção) / é o corpo que veste a minha alma. / Suas portas batem / atrás de um adeus sem data, / cavando feridas nas paredes retintas, / guardando ferrugem nas trancas / e escoriações nos portais. /// Há hera nas vigas e nos muros, / fechando porteiras, lacrando janelas / até sempre ou nunca mais. /// No jardim, presente e passado / perdem-se soterrados / pelo musgo que cresceu. /// Dentro de mim, acordado, / geme um silêncio de muitas eras / e grita a lembrança de um tempo / que não é o meu.

DIMAS MACEDO
COLABORADOR*
*Da Academia Cearense de Letras