CARLOS NEJAR E AS COPAS ALTAS DO ABSOLUTO
O poema-livro A árvore de Deus (Edições Húmus, 2020), de Carlos Nejar, recém lançado em Portugal, é um lenitivo lírico com palavras de esperança e de fé.
A força bíblica dos versos de Carlos Nejar lembra uma passagem do texto de Gênesis: “Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente.”.
As copas altas do Absoluto arvoram as iluminações e os incêndios inventivos de Carlos Nejar e disseminam os seus luzeiros de imagens sobre a beleza, a sabedoria e a eternidade.
O último verso do opus é de uma lucidez avassaladora: “Eu me movo em Deus.”.
Poeta maior e ficcionista incomum, Carlos Nejar está a comemorar sessenta anos de intensa produção literária neste ano redondo, enigmático e sofrido de dois mil e vinte.
É um Escritor de largueza imaginativa e de genialidade de linguagem tão necessária ao atemporal e aos dias trágicos, que hoje testemunhamos alarmados.
Carlos Nejar é demiurgo iluminado. Diz ele: “Sou árvore de Deus / E o amor cria pássaros.”. Sua poesia nos contamina com uma aceleração rítmica libertadora: “A memória é para dentro, como / a locomotiva que volta / por um túnel à estação. / E o esquecimento / é para fora, igual / a um canteiro / de urtigas.”.
A árvore de Deus é uma celebração à luz, que versa sobre a operação da bondade do Criador para com os seus filhos. São símbolos puros, espécies de escudos onde o poeta recria a ferocidade dos seus abismos, das suas pedras infinitas e dos seus absurdos: “O que é livre em nós / não se dissipa. / O que é livre / levanta os vivos.”.
João, em seus versículos, alude a Deus o nascimento da própria palavra: “No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus e era Deus.”. Já Carlos Nejar, profeticamente nos revela: “Caminho em Deus / E as palavras brilham. / Deus caminha / em Deus. / E só tenho palavras / para os vivos. / Os mortos já desaprenderam todas. // E sou louco de Deus e não / posso mudar de loucura.”.
Essa insanidade é provocação ao translúcido. O vate é um mago que conhece a íntima voragem de tudo. O bardo sai a perfurar a mísera condição do ser humano: “Sou um fruto consumado / no espírito.”.
Seduzidos pelo canto de claridade de Carlos Nejar, vamos a fulminar a realidade. É cruel sim a existência, até nos depararmos com as suas sentenças extraordinárias: “A vida, sem repararmos, / enlouquece e quer ter vogais / ressoando entre os jacintos. / Mais ainda é a imaginação / que embobece / de tanto ver.”.
Há um trecho nas escrituras sagradas que esclarece: “Cada palavra de Deus é comprovadamente pura; Ele é um escudo para quem Nele se refugia.”.
A dicção de Carlos Nejar reside no deslumbramento. São inúmeros os signos que se revestem em grandeza discursiva: “Mas a luz não enlouquece / nunca, sensata percebe / a longevidade da infância / e tudo cessa com o descer / do orvalho nas romãs.”.
A poesia de Carlos Nejar se hospeda na tônica da santidade anímica. É um metafísico coberto pelos sentidos divinos. Sua Literatura é absinto e sofreguidão, com a velocidade das decifrações reluzentes.
As maiores sementes neste belo poema de Carlos Nejar são o Amor e a sua devoção a Deus: “Ó Deus, há tanto amor, / a ponto de não carecer de nome / o amor. Já saí de mim / como a borboleta / do casulo saiu no voo.”.
Com galhos fartos, A árvore de Deus traduz o Inefável, com a reverência de um servo do Absoluto que se abastece nos frutíferos ramos do Senhor: “Não estranhes a minha loucura, / é de Deus. / E este livro caiu dentro / de Deus.”.
Esta obra está repleta de ensinamentos, possui língua própria e é
um relicário do céu, com os matizes fonéticos do universo.
Uma canção extasiada e redentora.
*Diego Mendes Sousa é poeta piauiense e filiado à
linhagem inaugural do poeta gaúcho Carlos Nejar.
Carlos Nejar / Foto: Reprodução
FRAGMENTOS DO POEMA-LIVRO DE CARLOS NEJAR
ESCOLHIDOS POR DIEGO MENDES SOUSA
Louco de Deus.
Deixo-me levar
como um navio. E foi Ele
que me descobriu. Sou árvore
de Deus.
O Absoluto
me engole, o Absoluto não tem
fome nas costas. Choro de Deus
como fonte, choro da fonte
em Deus.
(...)
A alma é árvore e não acabo.
O silêncio, alarme falso
da morte. E não sei mais
morrer: Deus me ensinou.
(...)
Deus sabe não parar,
sabe ser Deus e nós
humanos
não suportamos.
Por isso engulo o Absoluto,
para saber de ir subindo,
como as garatujas na página
e os números à margem.
E não entendo nada
que não seja amor.
(...)
Não, nunca quis inventar calendários,
para não inventar o fim, a escuridão.
E a morte se inventa a si mesma,
não importa de que parte.
Só sabe inventar e sumir.
Conheci um astrônomo
que ficou preso
na ponta de um mapa.
E viu a morte e escapou
montado num caranguejo.
(...)
E sou como a formiga andando
Andando no galho da eternidade.
Não precisei mudar de nome, fui
sendo engolido de Deus, onde
não serve nome. E Deus é tal,
que a tudo absorve. E dentro
Dele o que me turba?
Soletro a luz por dentro,
letra a letra e a santidade
é não enlouquecer
de tamanha claridade.
(...)
E tenho bosque atrás da alma,
onde pousam passarinhos.
Deus não aclama a beleza,
mas a beleza que aclama Deus.
Escrevo quando o espírito adormece.
Ao acordar, não preciso das palavras.
(...)
E a poesia é o nada
que acordou.
E não tem mais
língua tem o som
da alma para fora.
(...)
Viver é para dentro,
que o fora não alcança.
E o ouvido da alma
só escuta o que Deus
sussurra. E alma tem
ouvido de passarinho
e é ouvido que não voa.
(...)
Tudo o que sai de mim
está vivo.
Minha energia
civiliza os sonhos.
Apenas voa o que tem vida
dentro. E somente se traduz
o que já sonhou.
Não tenho piedade do passado
e ele nunca terá piedade
de mim e nem preciso.
Mas o futuro
é a saudade
começada.
Diego Mendes Sousa e Carlos Nejar/Foto: Reprodução
(in: Domingo com Poesia - "O melhor conteúdo sobre Literatura").
Nenhum comentário:
Postar um comentário