ESTESIA DA
COMPOSIÇÃO – Professor Maurício Moreira, estilista da palavra
Vianney
Mesquita*
Um monte de
livros não vale um bom mestre (Provérbio chinês).
De conformidade com a taxinomia
consagrada nos compêndios de versificação, como a própria denominação tenciona
indicar, o verso decassilábico é aquele que encerra dez sílabas métricas,
contadas do seu início até o último grupo de fonemas, e constitui, em conjunto
com outras estâncias poéticas, à extensão de seu nome, o poema decassílabo ou
decassilábico.
Na Poética, convém repetir por, ser
oportuno, a contagem das sílabas consonadas não coincide com a dos iguais
conjuntos de letras gramaticais, não apenas pelo fato de se ir até a tônica
derradeira, porquanto há outros elementos a considerar – conforme evoca Sânzio
de Azevedo, no seu admirável Para uma teoria do verso (Fortaleza:
Edições UFC, 1997).
De igual modo ocorre com os metagramas,
palavra do léxico da Retórica – representativa do desvio da correta composição
fonética vocabular, admitida em virtude da métrica e da estética poética – bem
como outros elementos figurativos responsáveis, complementariamente, pela
formosura da poesia.
Em virtude desta não concordância
silábica da composição ordinária com a elaboração poemática em todas as suas classificações
e tendências de afiliação, talvez não seja de todo inócuo refrigerar a memória
do leitor para um fato de relevo.
Reporto-me ao emprego, quando da
estrofação, das diversas resoluções figurais de adição, subtração e fusão
silábicas, como apócopes, síncopes, sinéreses etc, antes que ele,
equivocamente, ache de argumentar que o número de ictos (acentos fortes
incidentes sobre determinada sílaba de um pé) está defeituoso, porém
admiravelmente correto e distinto e nobre e vigoroso – conforme as qualificadas
composições enfeixadas neste volume póstumo (Expressões de uma Vida Fértil) do enorme poeta e desmedida
personalidade intelectual e humana que foi o Professor Maurício Moreira.
No Brasil e, quiçá, em outros pagos
lusófonos, o decassíliabo é, ainda, bastante apreciado, a despeito do prestígio
modal e da necessidade de atualização diacrônica das produções modernas em
verso branco, aliás também exercitadas com perfeição pelo Autor comentado, em
pleno fastígio do Modernismo no Brasil, alguns pares de anos após a histórica
Semana da Arte Moderna, em fevereiro de 1922.
Rogo vênia ao meu leitor a fim de
reproduzir, a modo de exemplo, um soneto decassilábico, oferecido a um garoto
filho de um amigo, o qual, à semelhança de Bilac (este dodecassílabo, como veremos
à frente), tem nome decassilábico perfeito – Lucas Vinicius de Carvalho Cruz.
FATO ALVISSAREIRO
Janeiro,
dia doze deste mês,
A
mãe, dona Rejane trouxe à luz,
Em
decassilábico português,
Lucas
Vinicius de Carvalho Cruz.
Segundo
originário do casal,
Broto
gentil, da união mais bela,
Pois
que havia anos – bom sinal !
Houvera
já surgido Rafaela.
Desta
cepa de Cruz e de Carvalho,
Com
o nome de Médico Evangelista,
Nasce
o sarmento cuja estrela brilha.
E
este garoto de elegante talho,
De
Régis procedente, encerra a lista
Em
arremata à festa da família.
Malgrado o citado moto modernista haja
quase desterrado a forma soneto das publicações brasileiras, ao ponto de
Cassiano Ricardo lobrigar nesta configuração provençal antiga o antes pandêmico “Sonetococcus brasiliensis” (AZEVEDO, opus citatum) – esta grade fixa de catorze versos (dois quartetos e
dois trísticos) jamais deixou de ser cultuada entre nós, tanto pela cadência,
musicalidade e outros componentes estéticos de seu uso, quanto pela relativa
facilidade de compô-la, hajam vistas a fixidez e a imutabilidade do seu arranjo
estrófico siciliano, somente à espera de quem, com alguma inspiração e certo
conhecimento do léxico – dirão alguns – lhe recheie os espaços.
Sânzio de Azevedo, em Otacílio Colares e a Coroa de Sonetos
(Fortaleza: Edições UFC, 1985), remete o leitor ao também seu O Soneto Moderno (In Poesia de Todo o Tempo. Fortaleza: Edições Clã, 1970), onde se
refere ao redisciplinamento poético e recuperação de antigas composições, por
parte da Geração de 1945, entre as quais se encontra o soneto, conforme
adiantamos há pouco, “[...] quase banido da literatura nacional, ao ponto de,
em 1930, a coletânea de Andrade Murici A
Nova Literatura Brasileira não abrigar um só desses poemas de forma
fixa”(AZEVEDO, ID.IBIDEM), como se nota, no começo da produção de Maurício
Moreira, em parte publicada no seu livro ora sob comento. Ele próprio, bem se
vê, aggiornou-se, compondo peças de
rara beleza modernista, como Saudade e
Calor e O Ébrio, nas quais comprova, de sobejo, sua adesão ao ímpeto artístico
de 1922, com insuperável aptidão
plástica.
Em estudo acerca da obra do escritor
piauiense Santiago Vasques Filho, Folhas
Mortas. Sobral: Edições UVA, 2000), eu expressava que a ideia de “[...]
regeneração dos padrões fixos, certamente aqui operada com a assistência da
Geração 1945, teve efeitos em poetas mais novos [...] (MESQUITA, Vianney. Fermento na Massa do Texto.Sobral:
Edições UVA, 2001), como, certamente, ocorreu com Maurício Moreira, a julgar
pela manifestação de sua atualidade literária expressa nas duas composições
retromencionadas, sitas na III Parte daquele volume.
A forma do redondilho maior (ou verso de
arte menor, que é o setessílabo, hetero ou homorrítmico), com segurança, é a
mais empregada em todas as correntes estéticas, maiormente porque esteia grande
parte das composições populares do Nordeste do Brasil, não deixando, também, de
ser aplicada na feitura do sonetilho – mesma grade dos demais polissilábicos,
mas com apenas sete ictos em todos os seus catorze versos – e outras
composições classificadas.
Certamente, logo após essas estâncias –
de aplicação profusa na nossa literatura de cordel – é o decassílabo, ou verso
heroico, o mais apreciado, no Brasil, em particular. Noventa e quatro sonetos
nesta feitura fazem parte do volume a que se dedicam estas notas, em seleção
procedida pela família do autor que, aliás, demonstrando o equilíbrio e a
felicidade sem igual do seu grupo sociológico primário, a este alude, na
maioria das suas cadenciadas e belíssimas composições, fato demonstrativo do
aparato intelectual deste professor, que fez história em Sobral, onde viveu
muito boa parte do seu tempo corporal, semeando o conhecimento e fazendo o bem
aos seus circunstantes, perpetuando seu exemplo per omnia tempora.
Relativamente ao chamado verso
alexandrino, com o qual Maurício Moreira brinda o leitor em catorze composições
no seu livro, este se refere ao poema dodecassilábico, pelo qual, dentre outras
razões, restou conhecido e popularizado o poeta parnasiano Olavo Bilac,
exatamente em razão de o seu nome completo modelar um “alexandrino perfeito”,
com os doze acentos deste verso – Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac – a
igual do ocorrente com o menino,”decassilábico perfeito”, Lucas Vinicius de
Carvalho Cruz, há pouco mencionado.
O soneto alexandrino, geralmente com
cesura na sexta sílaba (como em Martins) e na décima (Bilac), indicando a
divisão rítmica (hemistíquios) no caso do alexandrino clássico, pode também,
por modificação procedida pelo Romantismo, trazer acento noutras sílabas.
Consoante informação de domínio público,
a ideia da denominação – alexandrino –
apareceu no século XII, nas canções da gesta francesa, de modo que o nome
procede do título do poema, ou até da alusão ao seu autor, Alexandre de Bernay
(ou de Paris), trovador, o qual estruturou a composição O Romance de Alexandre, em doze pés, dando origem aos versos com
tal medida.
Conforme é dado ao consulente verificar,
é admirável o veio do Autor, ao expressar-se nesta craveira compositiva, a qual
solicita, como o fazem (porém, menos)
outras medidas poéticas, total império do metro e senhorio amplo do assunto a
ser coberto, geralmente evocando elementos figurais das Artes, da Filosofia e
das Ciências em geral e invitando fatos e feitos da História e de suas
personagens, o que exige, mencionando ideia de sociólogos, como Pierre
Bourdieu, v.g., o máximo de capital
cultural possível.
Na Parte III, há uma seleta de
composições em língua-prosa, vazadas em faustoso, porém frugal, Português,
mesmo no tempo em que foram escritas, desenlaçadas da fastienta mania
verborrágica, dos substantivos e verbos excessivamente enfáticos, dos adjetivos
sobejantes e das circunlocuções que, via de regra, aportam no truísmo
tautológico, traduzindo perfeitamente a paulificância da elocução.
Fácil é divisar, na grandiosidade
estética do Professor Maurício Moreira, sua preocupação diacrônica em atualizar
os valores históricos da Língua, para não mostrá-la arteriosclerótica aos seus
teúdos e manteúdos culturais. Basta, por conseguinte, se ler seus escritos, do
final dos anos 1930, para comprovar o zelo elocutório, o desprezo pelos
modismos e o gosto estético nos seus propósitos comunicativos, o que só é
possível àquele que entesourou, de estudo, as gemas valiosíssimas do preparo
intelectual que preside ao mister do extraordinário docente que foi, mas cuja
obra professoral contém desdobramentos e haverá de ser irradiada para todo o
sempre.
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