Fortaleza, 13 de novembro de 2013
Caro amigo,
Viajante das almas belas e frágeis,
dos corpos esculturais e dos
dilacerados,
Saudações.
Chego
até você vendo seus olhos de surpresa num riso tímido e feliz. Almejo à Rose e
aos seus filhos as melhores horas de todos os dias na graça de tê-lo.
Somente
agora pude viajar pelas páginas de Os
Dias Roubados. Título bem apropriado ao enredo: roteiro inédito e criativo
na arte da escrita e da imagem.
Seu
magnífico olhar é lançado com a humildade dos que sofrem. Das mais sinceras
confissões que o coração humano pode suportar. Penso e sinto como foi doloroso
para o iluminado escritor compor personagens sem luz dentro de si. Tecer um véu
de angústia e solidão intensa. Caminhar pelas sombras de solitárias figuras.
Sentir a matéria dominar o espírito. Vivenciar o desamparo social e cósmico.
Entrelaçar o passado e o futuro sempre perto de cada um de nós.
Prezado
amigo, abro uma porta para mim. Preciso de luz para divagar por suas sombras.
Um sobrevoo apenas. Mergulhar nelas eu nunca poderia, são suas, construídas no
milagre da inventividade. Até porque o cárcere penitenciário é um tema obscuro
para mim. Realidade de milhares de presos. Não posso invalidar o desespero
sentido dos que nele morreram, sobreviveram e sobrevivem, suas condições
sanitárias e assistência médica. Querer imaginá-la é “roubar” a dimensão de
suas próprias angústias, uma dor única de cada um.
Querido
amigo que muito me honra conhecer, em breve momento trago-lhe, em outro
paradigma, minhas reflexões: já morri muitas vezes... E como Monalisa, eu
descobri “todos os segredos do túmulo”.
Perambulo entre raios de sol e gotas de chuva, num passo lento mais de dor no
espírito do que dos anos que de mim se apoderam. O espírito domina a matéria.
Neste patamar meu aprisionamento veste-se de azul.
A alma
é livre! É policêntrica! Quando é subtraído do corpo o direito de seus desejos,
a alma encontra um novo imput de
sensibilidade. Novas colinas para a nostalgia. Pequenos grãos de bons
sentimentos dão sabor à vida. Isto, porém não evita a dor, mas traz alívio. O
sacrifício só é suportável pelo amor e pela fé.
Retomemos
o livro. Diga-me quem de nós mortais não teve, em outras circunstâncias, os
dias, as horas roubadas? Como diz Negri: “Quando
trabalhamos nossa alma se cansa como um corpo, pois não há liberdade suficiente
para a alma, assim como não há salário suficiente para o corpo.” O quanto
nós não arriscamos em nome de mais um instante de amor? Em nome deste
instante,assim como ocorre com muitos, o narrador-personagem de Os Dias Roubados se compromete para além
do que gostaria. Ele sabe que o outro (Águida) que se apresenta, não abarca a
dor da perda, ao perdê-lo. Sabe que neste amor não havia profundidade
cultivada, nem respeito pelos mistérios que se encontram numa relação. Ele sabe
deste abismo, mesmo assim se arrisca. Mas se perde nos labirintos da paixão por
Danila, que no futuro próximo o abandona à solidão. Ele conhece o desamor.
Infelizmente, nunca ouviu Adele em Someone
Like You. Inocente ele paga o preço de 15 anos de cárcere sem manifestar
raiva de Águida por ter se matado a ela e ao filho. Em seu íntimo ele acolhe a
culpa, assim como alguns de nós. Mas em sua razão se revolta porque não é
culpado e se consola na parede de Píramo
e Tisbe. O amor do prisioneiro sem identidade era apenas humano e o de
Águida, o lado escuro do amor, ambos caindo no reino do destino. Lembro Tosca -
Puccini “É lua cheia e o perfume noturno
das flores, arrebata-me o coração... é profunda a miséria dos profundos amores.”
Mas se salva pela própria natureza de escritor que lhe sorri e, exorcizando no
escorrer das palavras o tempo que lhe foi roubado, liberta-se dos grilhões da
prisão; apesar de sua própria alma continuar encarcerada. Ou seja: ainda que
liberto por Ascânio, que lhe revela a atitude trágica de Águida, ele permanece
sem encontrar os tesouros da vida. Não compreende que o desejo de amor, que
existe em nós, traz também uma ânsia de solidão.
Ouve
apenas o grito que lhe persegue, face ao desatino cometido por Águida. E isso o
conduz ao desespero. No suicídio contamos com a misericórdia de Deus. Ele não
acolheu o sangue derramado de Águida e do suposto filho, por amor. O grito,
cada vez maior, pouco a pouco silencia sua psiquê entorpecida.
Nenhuma
proximidade com as pessoas devolve-lhe a alegria no coração. Não olhava mais
para fora de si mesmo. Não havia mais espaço dentro dele, que morria nas
páginas pelas quais vivia envolto na fragilidade da solidão. Ele estava para
além do sentimento e da percepção de que é o outro que nos revela.
Quando
Felícia, fonte de amparo e beleza, desaparece, o narrador-personagem, no
habitual trânsito do pseudodiálogo, revela sua mente ao ser acometido por um
pico esquizofrênico (páginas 87 e 88). Seria falta de Lítio ou fragilidade das
Patologias do Amor?
Então
compreendo porque ele não absorveu o mito clássico de Daphne e Apolo, que fala
do sonho da fuga. A moça que vira árvore e seus ramos se bifurcam para o céu,
sugerindo vários cominhos para a alma. Ele era sempre dois. Ambos sem nenhum
clarão interior, Sem o equilíbrio da mente: sempre é noite!
Na
célebre frase que permeia a narrativa e se torna o seu epitáfio, “A noite não
tarda, mesmo para os que veneram o sol”, metaforicamente a noite é a sombra que
lhe chega e acompanha; o sol, sua miséria humana. Isso enquanto ele não fecha
os olhos para sempre e seu corpo passa a repousar sob a fria lápide
materializada com a anunciada inscrição.
Quem
era Felícia? Para mim, eram-lhe raios de sol, vindos à sua mente, uma Vênus
nascida das espumas do mar, a diva do conto “Sobreviventes”, pags. 75 e 76 do
livro Mundo dos Vivos[2].
Entre quatro paredes coube o universo. Ela vestia-se de eternidade com trajes
de um momento. Poderia ser a princesa Tisbe − a paixão que deu cor às amoras − mostrando-lhe os obstáculos e os
desencontros do amor. Poderia ser Daphne convidando-o a brincar, já que a fuga
da intimidade tem algo sedutor para quem foge e para quem persegue.
Quem
era Aglaís? Uma lembrança! Uma possibilidade!
Percorrido
assim um pouco o caminho ontológico da condição humana, proponho que cada
pessoa deve encontrar seus próprios mistérios de amor, de esperança, de verdade
e de fé. E deste modo a história continua com nossas mentes povoadas de
condicionais e dúvidas, pois, quem de nós não traz no coração os “se” e os
“talvez” da vida?
Minhas considerações finais na
abordagem do caminho.
O
narrador-personagem não tem identidade, não possui nome. Mas isso não o nega
como pessoa, indivíduo, na sua realidade mental e moral. Não se trata aqui de
negar o mal como oposição ao bem, sombra como oposição da luz, pois sabemos que
os contrários andam juntos. Nem se trata de dizer que as sombras são somente
negativas, reprimidas e ocultas, pois também trazem impulsos criadores. Ele
veio da luz, perdeu-se nas profundezas das próprias angústias do seu ego e
permaneceu retido em várias prisões enquanto exercia um papel simbiótico com o
ato da escrita. Seus relatos nunca saíram da caverna, uma vez que ele nunca
mais veria a luz, nem em si, nem no mundo exterior contemplado pela razão, o
que não significou a invalidação de sua vida consciente. Seu corpo (discussão
para outro momento), enquanto viveu a luz do mundo real e ele, lúcido,
dissertou sobre leituras e mitos, descreveu ruas e a cidade, cafés e episódios
do dia a dia.
Ao
levar consigo para dentro da caverna (cárcere
ou manicômio), as experiências e lembranças vão se misturando e se
digladiando até matar o outro que existe em si. Estabelece-se em predominância
no seu self o lado obscuro da sua
personalidade, arquétipo sombrio da sua psiquê. Ele era um prisioneiro de si
mesmo. E assim o seu ser vai se apagando até a morte.
O
“Relato de Contraponto” surge como ponte do criador, Carlos Vaz, para que
possamos compreender a criatura: o seu livro.
Os Dias Roubados, na perspectiva de seu brilhante
autor, nos mostra como cada um de nós pode cair em abismos profundos, sombrios
e frágeis de nossa psiquê, de nossa alma (anima) ou de nossos destinos.
Deixo
como sugestão aos professores de Filosofia, encampar Os Dias Roubados aos estudos acadêmicos das universidades de seus
magistérios. E como tal, uma obra apropriada à discussão da nova realidade
contemporânea.
Se um
inesquecível amigo, filosofo e poeta, funcionário do Banco Central e professor
da UECE, vivo estivesse − falo de Nelson Castelo Branco Eulálio Filho, um homem
que amava olhar o céu da noite; magrinho, não era alto, usava botas de couro
pretas, antigo hábito que trouxe de Brasília − indicaria a ele Os Dias Roubados, um livro
admiravelmente concentrado em 95 páginas, um Tratado dos Negros e Vermelhos
abismos da Condição Humana, a ser discutido em suas aulas, à perspectiva da luz
filosófica.
E ele,
como filósofo existencialista, brindaria primeiro ao sabor do velho Teacher’s
no barzinho defronte a faculdade.
Depois, afagando a longa barba grisalha, abriria um sorriso e me diria:
“Putz grila! Rosinha!”. Nunca uma cadeira vazia significou tanto por tão longo
tempo! Lá no céu azul, entre as estrelas ele cintila. Peço licença para um
pouco desta carta ser dedicado a ele. Há mais de vinte anos não o vejo, nem mais o verei. ‘‘E nenhum outro cisne branco nadou mais ao meu lado”.
Sinceros
agradecimentos pelo convite ao lançamento de sua obra-prima. Quem sabe, num
futuro momento, eu lhe chegue como as simpáticas cartas que o personagem sem
identidade recebia de seus leitores ao repartirem uma dor consentida.
Meu
caro Carlos Vaz, eu fico por aqui compartilhando a famosa solução do poeta
Rainer Maria Rilke para os relacionamentos: cada
pessoa proteja a solidão da outra. Vou-me, deixando esta carta nas mãos de
Hermes, o mensageiro da alma, e de Mercúrio, que presidiu a escrita.
Um afetuoso abraço de
Sol, flores, chuvas, luas e estrelas. A você e aos seus,
Porque assim as grandes almas são feitas.
Rosa Virgínia Carneiro de Castro.
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