APRECIAÇÃO LITERÁRIA
Vianney Mesquita
O
tempo, apesar da sua velocidade, move-se lentamente para aquele cuja preocupação
é vê-lo passar. (SAMUEL JOHNSON-Crítico literário e escritor
eclético inglês. 18.09.1709 -13.12.1884).
1
INTRODUÇÃO
Lembro-me,
cristalinamente - no começo das Edições UFC, produtora editorial instituída
pelo Reitor Paulo Elpídio de Meneses Neto, no final dos anos 1970 - do
professor Geraldo Jesuino trabalhando capas e seções editoriais, por exemplo,
de Os Doze Parafusos e Dizem que os Cães Veem Coisas,
procedentes de um dos maiores contistas do Mundo - Moreira Campos, entre tantos
outros, glória da literatura do nosso Estado.
E ele o fazia para muitos literatos
excepcionais, bons, sofríveis e maus, demandantes da Imprensa Universitária, a
fim de submeterem suas produções àquele, já então, mestre dos haveres
plásticos, insuperável – exprimo sem
receio - em virtude, principalmente, da simbiose necessariamente por ele
estabelecida com o tema objeto da representação estética configurada no
invólucro do produto.
Tal intenta expressar o fato de GJ
não se atrever, já então, como se fora mero pintor de paredes – sem o estudo
procedido de adrede - a concertar a toga do livro para se mostrar devidamente
caiada, no entanto, sem qualquer liame com sua proposição sob o prisma do
gênero e o espectro do enredo ou do estro, somente para se desincumbir
mecanicamente do seu cometimento de operador gráfico.
Modus
operandi semelhante a este, absolutamente responsável e invejavelmente
praticado por GJ no curso de dezenas de anos, levou, por exemplo, Ludwig
Wittgenstein, lógico e matemático do Österreich, a não atender às insistências
de seu mestre, Bertrand Russel, para que publicasse as ideias do primeiro,
mesmo incompletas e imperfeitas, e até sem haver este resolvido todos os
entraves da Lógica, o que, aliás, nunca poderia ocorrer.
Entrementes, algumas pessoas,
dotadas da meticulosidade que sempre presidiu ao caráter e vigilância
profissional de GJ – num exemplo afeito ao caso, porém com distintas
compreensões noutras circunstâncias – costumeiramente legitimam sua mudez
editorial, remetendo-se a Immanuel Kant, na vagarosa expectativa de que suas
compreensões sejam depuradas à perfeição, sem coima de erro, aos quais, como
recomenda Tagore, não cerremos a passagem, porquanto a verdade é passível de
ficar de fora.
O fato é que o começo da trilogia
criticista de Kant ocorreu publicamente apenas em 1781, quando o Filósofo
prussiano já contabilizava 57 anos, pois, na Crítica da Razão Pura, ele já traçara os limites em que se há de
exercer a razão especulativa, quando a pessoa resulta incapaz de aportar
diretamente às verdades metafísicas. Eis que, porém, a Crítica da Razão Prática, na qual encontrou, ao modo de postulados,
as verdades transcendentes, às quais a pura lógica é impossível ser elevada,
sucedeu somente depois, no ano de 1788.
No remate do seu criticismo, Kant, maduro e perfeito – conforme ainda não se achava GJ – mandou a público seu
tratado a respeito do belo e do sublime, na Crítica
do Julgamento, em 1790 – nove anos, então, para legar à Humanidade o tão
apreciado Criticismo Kantiano.
2 O CONTO,
ENFIM
Não sendo defeso alçar GJ a IK, mutatis mutandis, como alude nas
guarnições de Brumas o polígrafo a
mancheias Pedro Salgueiro, Geraldo Jesuino começa, e no gênero dos mais
difíceis, então como um Kant aprestado, considerando-se a noção de que o
exercício salutar do pensamento nos leva a transpor as estremas do egoísmo,
servindo de remédio para a alma sofrida e fortalecimento multiplicado para a sadia
existência.
A deleitosa leitura de Brumas (Fortaleza: Imprece, 2016)
constitui lance venturoso, em que a reflexão se volve para o espírito,
intermediada pela excelente literatura ficcionista, por via da qual se expressa
o conto de qualidade, conforme os ali reunidos e sem remanescer nem faltar
qualquer caractere gráfico ou cogitativo. Tem curso, então, o regalo imaginante,
compartido pelos leitores, na propagação das imensas possibilidades vocabulares
sob os mais distintos jeitos de interpretar, concedendo azo a demonstrações nas
quais nem o literato houvera refletido. Esse portento da reflexão, deferência
de Deus apenas aos hominídeos do estrato intelectivo de GJ, enleia e conforta a
alma, depois do ardor da faina, ao abrandar horizontalmente o khrónos vital.
São estes, pois, principalmente em
GJ, o ofício da Arte, o objeto das Letras e um de seus melhores transportes – a
estória breve e integral do conto. Consoante
se reconhece quando do estudo, alcance e definição das diversas feições
literárias enfeixadas nas escritas, esta craveira compositiva, além de ligeira
e exata, admite somente um conflito, ação singular, dispensando a ramosidade de
enredos secundários e completivos, assentidos pelos romances e novelas.
Em Brumas, a igual do que sucede nas peças dos decantados contistas –
Machado de Assis, Hans-Christian Andersen, Moreira Campos, Dalton Trevisan,
Ernst Theodor Wilhelm Hoffmann, Fialho de Almeida et reliqua - as estórias
de GJ vinculam-se a um número reduzido de personagens, com o argumento cosido
em determinada unidade de tempo. Eis a razão por que as imposições estruturais
ora referidas elidem do seu exercício – ou deveriam arredar - escritores ainda
abstinentes e não visitantes desta prontidão raciocinativa e expressiva,
concessora, ao conto, da combinação bem dosificada dos valores de intelecção e
expressão solicitados pela obra d’Arte.
Contrariamente, porém, ao acontecido
com o conto, do qual GJ restou continente até a publicação de Brumas, haja vista somente agora haver
tombado sequoia tão avelhantada e em momento de muito regozijo para as seis
artes coestaduanas, decerto porque desnecessário, ele não guardou parcimônia no
concernente às apreciações críticas. Isto porque, há dois anos, por exemplo,
escreveu monumental ensaio a respeito da obra Poesia do Brasil e do Mundo de Hoje, do imortal Rogério Bessa, de
tão sublime força argumentativa ao ponto de me haver retirado de ligeira
contingência ferial literária, quando levei a público o artigo intitulado
“Prosa Alçadamente Professoral de Geraldo Jesuino da Costa”, na Revista da Academia Cearense da Língua
Portuguesa (38:12, 2015); e, enfeixado em volume de 2014 (Como Abraços. Fortaleza: Imprece
Editora), GJ publicou “Estrigas/Bandeira”, para o livro de Estrigas, denominado
Bandeira, a Permanência de um Pintor,
bem assim, entre outros ajuntados no mencionado compêndio (acerca do qual escrevi para a Academia Cearense de Literatura e
Jornalismo a apreciação literária sob o titulo de “Pequeno no Tamanho e Grande
na Conquista”), editou “Estrela, comparte de Palavra, Vida Minha, de Inez Figueiredo.
Ao diverso de haver perfilhado,
tardiamente - contudo, sem falta - a dificílima grade do conto, já em 1984 –
faz 32 anos – Geraldo Jesuino da Costa procedeu ao estudo introdutório de meu
volume de estreia – Sobre Livros – Aspectos
da Editoração Acadêmica (Brasília: Proed-MEC; Fortaleza: Edições UFC). Neste
comenos, ele já se fazia escritor maturado no estudo constante, ao conformar o
mister de artífice editorial para envolver com o continente da sua criação
(capas, títulos, diagramações) os conteúdos similares das produções a si
confiadas. Esse exercício era desenvolvido, muita vez, nos ordinários desvãos
da vida e insulado nas águas-furtadas da atividade editorial cearense, nem
sempre muito tranquila em razão dos embaraços recorrentes na relação dos autores
com as demais frações do complexo editorial.
Ponto de realce sensível,
liminarmente, nos contos deste livro de Geraldo Jesuino da Costa descansa na
largueza de aplicação da Língua Portuguesa, sob comento na seção seguinte, pois
o autor, discordantemente do modo de muitos procederem, elegeu para emprego
todo o código glossológico lusitano, sem se importar com estratos, tampouco
regiões, muito menos com a escolaridade dos leitores.
Com isso, alcança mostrar suas
personagens e denotar diálogos, sem se impor limites no ofício de narrador,
como nos casos em que recorre, amiúde, a palavras e expressões acerca das quais
alguém com juízos mais hiperbólicos poderia debitar à partida dobrada dos
dialetos e até de patois, não
registados no Brasil, em raro favor dessa extraordinária Língua Nacional.
3 AMPLO
EMPREGO DA LÍNGUA PORTUGUESA
No segmento “Palavras que Ensinam”,
constante de Nuntia Morata – Ensaios e
Recensões (Fortaleza: Expressão Gráfica, 2014, 368 pp), eu já exprimia a ideia
– não custa repetir - de que as produções do autor sob glosa sucedem adversas
às trivialidades próprias das elocuções terra-a-terra, fogem do sem sal e do
desimportante, porquanto concedem estimação ao emprego, ricamente
diversificado, de todas as classes de palavras, em especial os verbos, com as
mui variadas acepções, desde os nomes às interjeições, e em suas significações
plurais sob o permisso de uma língua magnificamente polissêmica e sincrítica.
Seu estro de artista plástico, poeta
e contista vai buscar, pois lhes conhece os caminhos, as acepções jungidas a cada
evento, com vistas a outorgar aos seus torneios a justeza gramatical e a
acomodação estilística, conferindo ao escrito o estatuto de peça literária
deleitante e única, como a dizer “sou o autor”, este texto é meu”, de forma
que, mesmo sem sua chancela imprimida, saberá o bom leitor o fato de que é da
sua autoria o trabalho que tiver de deparar para consumir.
GJ não aceita, não é partidário, da
ideia limitante de 600 vocábulos, estremando o repertório da Língua Portuguesa,
exclusivamente para facilitar a leitura por parte daquele consulente não
preparado convenientemente na habilidade de recepção. Em assim procedendo, o
que acrescenta o escritor ao cabedal dos recebedores? Qual o contributo novo da
peça, passível de conduzir à melhoria da recepção do lado de audiências mais
desprovidas? Que pedagogia exerceu o autor de uma obra com repertório tão
restrito? - Evidentemente, quase nenhuma, pois prossegue instalada a mesmice,
continua a usança, tem curso perene a rotina...
Isto Geraldo Jesuino consegue
denegar, quando aplica a língua na sua admiranda extensibilidade, sem, todavia,
carecer mostrar-se arrogante e inalcançável sob o espectro literário, conquanto
– e tal já se depreendeu – seja exigível do contingente ledor boa circunstância
de leitura; e, não o sabendo, eis a ocasião para, assentado numa escrita
escorreita, correta e elevada, procurar apreender significados vocabulares e
identificar significações estilísticas, a fim de alcançar o nível de bom
leitor, ao exceder o portal da mera condição de alfabetizado e, em
consequência, habitar o estádio de pronto decodificador.
Então, penso ser fácil verificar,
mesmo o público menos atilado, os expedientes escriturais dele característicos,
com vistas a conformar, a modo de estilo, as grandezas procedentes da atividade
plástica que amanha e cultua às necessidades expressivas da Literatura, mesmo
em se falando do gênero conto. Assim, exercita dúplice estese, a
redundar em mais donaire para sua prosa e, de tal maneira, aferra sujeito a
objeto da relação comunicativa, do começo ao cabo, nos dois extremos do
discurso.
No meu entendimento, resulta falaz a
intenção de liberar os textos da aplicação, quando couber, de quaisquer
expedientes oferecidos pela nossa Língua, a fim de deixá-los mais “leves”, sob
o prisma da recepção, para leitores menos aprovisionados intelectualmente, pois
a estes cumpre é buscar a apreensão dos teores, apelando para as obras
lexicográficas, o exame da Gramática, compulsar manuais de estilo e demais
produções de referência, a fim de evoluírem, mesmo na autodidaxia caseira, para
um patamar de leitura e decodificação condizente com o atual estado d’arte do
conhecimento.
Não há de o escritor se esforçar -
sem qualquer pressuposto pedagógico e abrindo mão da habilidade obtida em
incessantes leituras e experimentos em laboratórios e lugares de prova, nas
escolas e no recesso dos lares, com frequência, em altas horas da madrugada -
para nivelar sua escrita ao rés do chão, a fim de ceder, rasteiramente, suas
compreensões para quem não tenciona evoluir como bom decodificador de
mensagens. Saber é muito bom, porém, aprender é penoso.
Prezo, por demais, então, os
escritos inteligentes, cultos e bem expressos, como os de GJ, porquanto denotativos
de seus aviamentos intelectivos e artísticos – agora incluso a medida do conto, haja vista a ideia de que “suas
palavras servem para ensinar”, conforme sobra manifesto no título do mencionado
segmento do Nuntia Morata.
4 EM REMATE
O fato é que, jamais a desoras, a
fim de regozijar seus pares e enriquecer nossos haveres librários com numismas
de real valor, nos chegou Brumas, ditado por Machado de Assis a GJ (Dimas
Macedo), coberto dos atributos peculiares ao custoso expediente do conto, porteira
fechada a muito escrevinhador no tentame de lograr, debalde, transpô-la,
porquanto barrado pelas travas e arames farpados do seu cercado exigente. Só
quem o adentra, pois, é a pessoa apropriada das preciosas gemas conquistadas no
exercício diuturno, anual e decenal da atividade artística, sadia e correta,
divisada e instantemente prescrita pela Teoria da Literatura.
A leitura atentiva de Brumas, em primeira vez, visou à
compreensão dos seus entrechos, como parte exploratória das pretensões
autorais, conforme sucede com quaisquer gêneros que se procure descodificar
para apreensão dos enredos, advindo, porém, na sequência, a tarefa de
esquadrinhar sua axiologia estética em aspectos particulares.
Acontece como a quem vê – e vi - de
inopino e chofre, os boticellis, ghirlandaios, rafaéis e michelangellos do teto
da Igreja Sistina, ou mesmo, e.g., as
indizíveis peças esculturais do d’Orsay, como A Menina Chorando (Albert Bartholome), Liberdade (Fredéric-Auguste Bartholdi) e Leão Sentado (Antoine-Louis Barye); e, no Prado, as belezas sem
superação plástica dos velazquez, el grecos, goyas e boschs.
Primeiro, vem a estupefação –
queda-se pasmado com tanta estesia integral. Instala-se, a posteriori, a investigação dos detalhes, quando as belezas se
vão, num crescendo, se ostentando, numa asa, em um pé, uma pata, um rosto,
sorrisos; e em tanto que o consulente tencione procurar.
Desse modo me achei, desde a prima
revista de Brumas, quando já houvera
alcançado seu argumento. Senti-me tanto inebriado com os ali entrevistos
grossos de Archangello Corelli e Tomaso Albinoni – a interação de dois violinos
e um violoncelo com os demais da orquestra - bem assim extasiado ante a audição,
no livro registada, dos agudos de um stradivarius de Enrico Toselli, particularmente
na Serenata, ouvida pela primeira vez
no começo dos ’60, via amplificadora dos padres piamartinos, na Igreja de
Nazaré, Fortaleza-CE.
Quanta satisfação! Tanto enleio!
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