Não é à toa que se diz estar a arte sempre a apontar
para possibilidades cada vez mais renovadas de vida, ao propiciar a criação de
pontos de vista sobre o mundo e sobre o homem que, num impulso lúdico de sua
criatividade torna-se senhor de sua imaginação assumindo sua intrínseca
dimensão humana.
Este posicionamento nos acerca a
propósito da leitura do mais recente livro de poemas assinado pelo
escritor-médico José Telles. Inegavelmente, O Lacre do Silêncio (Fortaleza:
Edições Sobrames, 2004), em belo projeto gráfico de Geraldo Jesuíno, chega até
nós extasiando-nos os sentidos.
A partir do título, já se
descortina a vocação plural de que é possuidor José Telles para a construção do
seu universo poético, no qual o homem com suas dúvidas, angústias, medos,
perdas e outras dores ontológicas parece sucumbir ante o inevitável. No
entanto, carregando o sonho como sua tocha olímpica, ele segue, qual Quixote, a
duelar com seus fantasmas para a vitória do amor e do sonho, que são o canto
inaugural do universo poético de José Telles. Comprovemo-lo: Tentarei meu
último sonho / sem o vexame das horas / (...) / Serei pérola na porcelana do
teu corpo / e madrugada na lâmina da tua aurora. (“Tempo e Espera”)
O tempo, esse construtor/demolidor
de tudo, também é motivo das divagações metafísicas do Autor. Destaque-se,
porém, que José Telles não se apavora ante a voracidade de sua famélica boca, antes vive o momento em
toda a sua potencialidade de relação com o mundo e com a natureza. Todo ele é
dinâmica de procura, templo de encontro, liberdade transcendente. Vejamos: lágrimas
impressionam meu disfarce / na varanda do tempo uma chuva faz memória. (“Disfarce”);
De semita tenho o norte e as areias do mundo / mas procuro terras pra viver.
(“Viajor da Lama dos Infernos”); No bonde dos sonhos / pedaços de dor
ainda viajam comigo / e lágrimas acumuladas / são lâminas que se afiam cortando
tempo e vingança. (“Vingança”); O tempo me marca com o rigor do
mistério, / a vida se espalha e congela meu delírio. (“Delírio”); O
tempo em minha pele / é um tempo flácido e vencido. (“Ária de Amor ao
Tempo”); Existo? Ou assisto minha ausência sendo eu? (“O Ser e o Nada”).
Amante e amador, por natureza, e
tendo aprendido de Cecília Meireles que O destino de quem ama / é vário, /
como o trajeto do fumo /, José Telles vivencia o amor em toda a sua
plenitude, antes que o silêncio ponha o lacre definitivo em sua vida. E ele
sabe que o grande dia é o hoje, o agora. Em razão disso, o amor o leva a
preferir a lua a qualquer outro estrelato, e se faz gâmico e
poligâmico, mas cultua a escolhida, porque entende estar em trânsito por
trás do seu espelho. E arremata em “Cicatrizes”: duro é esse gosto de
nada / e o ritmo morto das coisas.
A amada é o cálice em que o poeta
extravasa o vinho de seu erotismo para o brinde a dois. E, assim, derramado
numa “Saudade Líquida”, o poeta desperta-nos a sensibilidade, ao cantar: Em
parceria sou uno / a dois sou espelho / devasso lábios e mucosas / em beijos de
lama e sexo / tua boca bóia em minha boca / e de tocaia / beijo tua alma / teu
corpo desafio / espelho / espalho-me / saudade líquida. Atente-se para a
carga plurissignificativa do belíssimo “achado” poético saudade líquida.
Desse modo, sai o poeta
(des)afiando dores: a dor medeia a flor e cresce salgando a terra;
silêncios: Sou o silêncio / que incomoda vizinhos; angústias: Quero
sair por aí... / exibindo minha angústia / na tatuagem que pula o muro do
vizinho; medos: O medo / espiava da janela querendo paisagem;
solidão: Nas celas / o sol penetra em retângulos / e encontra o
ângulo da dor; saudade: Mas sem aquele flanco de saudade, que dor
me restaria?; fome: No meu relógio de pedra / a fome é um
silêncio que cai na boca dos mortos; rugas: Minhas rugas / são
fantasias da minha alma, /.../ elas não são cicatrizes, / são árias de
amor e paisagem / no armorial do corpo; e a morte, tratada
sob o viés do seu característico bom-humor: Às vezes / a morte me chama / eu
faço que não escuto / mas quando / chamo por ela / vai atrás doutro defunto..
Enfim, resta-nos aplaudir a poesia
vigorosa de José Telles, com a alma agradecida, leve e feliz, por nos ter
propiciado esse momento infinito de estesia, esse penetrar em seu universo
onírico, no qual a palavra, trabalhada sob metáforas bem construídas,
oferece-nos imagens e paisagens ligadas por relações, via de regra, distintas
da lógica e da casualidade, o que sói acontecer com os verdadeiros artesãos da
arte.
Giselda Medeiros
(in: "Crítica Reunida")
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