domingo, 26 de janeiro de 2014

ENSAIO

Hermínia Lima: a pele das palavras

25.01.2014
A leitura crítica de um texto deve, antes de tudo, concentra-se nas trilhas da própria escritura
Pulsante, vigorosa, sensorial: é assim que se afigura a poesia de Hermínia Lima. Em Sangria Azul, seu primeiro livro de poemas, já celebrava a sensualidade do corpo, o amor vivido, saciado, de modo que essa poesia amorosa, sensual, retomada nos versos de Sendas do sacrário, já constitui uma marca de sua poética e, nesse novo livro de poesia, confirma sua capacidade de desnudar-se sem ser piegas, de decantar o erotismo sem ser vulgar.

Hermínia Lima é professora da Universidade de Fortaleza (Unifor), doutoranda em Línguística na Universidade Federal do Ceará (UFC). No campo da produção literária, dedica-se ao ensaio e à poesia, com proficiência, imaginação e sensibilidade 
O erotismo

Praticada, pode-se dizer, desde sempre, a poesia erótica tem belos registros em obras de poetas gregos e latinos da Antiguidade Clássica; posteriormente a exercitaram poetas da lírica medieval e provençal, do Barroco e do Arcadismo, seguidos pelos românticos e, mais tarde, pelos modernos e pós-modernos.

Embora exercitada em quase todas as épocas, a poesia do amor carnal é mais um estilo próprio de cada autor do que uma característica marcante dos movimentos literários. No Brasil, José Alcides Pinto, Hilda Hilst e Pedro Lyra são representantes do que há de melhor nesta seara.

Para Hermínia Lima , são as ‘ardências do corpo’, os desejos, fontes de inspiração. O sexo – “sentido de ser” – não é apenas leitmotiv de versos, mas a própria poesia: (Texto I)Seus versos são extremamente sensoriais, inspirados no(s) amor(es) vivido(s), degustado(s) e eternizado(s) na pele das palavras, onde ele(s) não perecem. Sim, é pela palavra que ela (re) constrói as imagens de carícias, toques, olhares e explosões de prazer que sutilmente se desenham.

Outro livro

Sendas do sacrário é incontestavelmente um livro de amor. Divididos em três partes, os poemas ilustram a mulher ativa, dona do seu corpo e do seu prazer, em busca do amor. Seu eu lírico, notadamente feminino, não reduz sua poesia a meros devaneios românticos de uma mulher. Como Hilda Hilst, ela ora celebra a posse, a carícia concreta, ora projeta, idealiza e sonha com a chegada daquele que abrirá as portas de seu santuário, como se lê em “Busca”:(Texto II)

Leitura do poema
A promessa de futuro, seguramente anunciada, mostra o poder da busca e a capacidade de transpor céus e terra pelo abraço desejado. Embora o eu lírico não seja declaradamente uma mulher, vê-se nas entrelinhas, a voz das Penélopes, claro, do nosso tempo, pois, em vez de fazer e desfazer mantas, ela “cruza fronteiras” e “cumpre a saga” enquanto aguarda seu “Odisseu”.

Sabe a hora do encontro, simbólico, nas chamas, nas águas ou entre-palavras. Esse último reserva já a possibilidade de o amor realizar-se apenas em forma de versos, como disse, na pele das palavras.

Singularidades 

Pelo elemento fogo, ela é corpo em brasa, bacante vestal nos braços do seu homem, consoante os versos: (Aquecidos, a princípio, pela mistura insólita / de vinho e chocolate, ferviam agora, / na chama dos próprios corpos / que incendiava a cama, o quarto / e ameaçava incinerar o mundo inteiro (“Joinville” p.41).
Nas águas, é sereia ardilosa, tomando posse do seu Boto (Enquanto canto / encanto. / O canto, à cata / acha, em um canto, / estrelas / e as cata / para o ato (“Sereia” p.57)) . Entre-palavras, é a mulher que seduz pelo verbo encarnado, lúcida e visionária, segura do que tem e/ou pode ter (Ah, santa e profana habilidade de tocar com as palavras! (“Divindade” p. 70).

Professora da Unifor
AÍLA SAMPAIOEspecial para o Ler

Trechos
TEXTO I 

Sobre um altar de linho, / Derramam-se os perfumes da carne /// (Poemas pulam entre pernas / e pousam cansados / na cintilante espera / do recomeço) (“Altar” p. 24)

TEXTO II
Abrirei estradas para o norte, / rasgarei a mata catando loas, /e levarei o sol para secar florestas. /// Espreitarei os vizinhos peruanos, /aprenderei os ritos dos povos bolivianos, / E cruzarei fronteiras navegando o rio Acre. /// Decifrarei dialetos de todas as tribos, / mergulharei no rito de pajelança da nação Kaxinawa, / e seguirei as águas, morada de Cobra Norato. /// Boiúna será meu guia, / pirarucus e castanhas meu alimento / pelas terras dos seringais. /// Enfim, cumprida a saga, / suspenderei a chuva, / e nua caminharei pela mata, / sorvendo a taça do Santo Daime, / enquanto espero a hora do teu abraço.

FIQUE POR DENTRO
Algumas notas sobre a autora e sua obra
Hermínia Lima é professora da Unifor, doutoranda em Linguística na Universidade Federal do Ceará, antes, lecionou Literatura Brasileira em Cursinhos e Escolas Particulares, em nossa cidade, em turmas do terceiro ano do ensino médio. De intensa produção literária, dedica-se, sobretudo, aos gêneros poesia e ensaio; neste, contribui, com textos bem elaborados e centrados rigor científico, para uma melhor compreensão das produções artísticas da pós-modernidade; na poesia, é uma das vozes renovadoras desse discurso. 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

"Todo filho é pai da morte de seu pai" - Fabrício Carpinejar

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Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai. É quando o pai envelhece e começa a trotear como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso. É quando aquele pai que segurava com força nossa mão já não tem como se levantar sozinho. É quando aquele pai, outrora firme e instransponível, enfraquece de vez e demora o dobro da respiração para sair de seu lugar. É quando aquele pai, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela - tudo é corredor, tudo é longe. É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de seus remédios. E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz. Todo filho é pai da morte de seu pai. Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente nossa última gravidez. Nosso último ensinamento. Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta. E assim como mudamos a casa para atender nossos bebês, tapando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais. Uma das primeiras transformações acontece no banheiro. Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no box do chuveiro. A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas. Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos de nossos protetores. Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos nossos braços nas paredes. A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas paredes. Nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões. Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus. Seremos estranhos em nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais adoecem e precisariam da gente? Nos arrependeremos dos sofás, das estátuas e do acesso caracol, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete. E feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia. Meu amigo José Klein acompanhou o pai até seus derradeiros minutos. No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca, buscando repor os lençóis, quando Zé gritou de sua cadeira: — Deixa que eu ajudo. Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez seu pai no colo. Colocou o rosto de seu pai contra seu peito. Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer: pequeno, enrugado, frágil, tremendo. Ficou segurando um bom tempo, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo interminável. Embalou o pai de um lado para o outro. Aninhou o pai. Acalmou o pai. E apenas dizia, sussurrado: — Estou aqui, estou aqui, pai! O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014


CHAMAS

                                      Derrama-se em brasas o sol morrente...
                                      Há gritos de silêncio sobre a terra,
                                      e a alma dos rios, silente, chora a vida
                                      que morre entre as pedras submersas.

                                      Pesado é o céu... E as aves agoureiras
                                      descem as asas sobre a torre da matriz,
                                      o rude bico, as penas eriçadas,
                                      o canto mudo sofrendo na garganta.

                                      No manto aflito do horizonte surgem
                                      assustadas estrelas solitárias,
                                      de brilho morno e, com olhos de surpresa,
                                      espreitam tímidas a timidez da luz.

                                      A noite segue em sua nave de mistério,
                                      a negra mão a controlar as sombras,
                                      a cabeleira densa sobre os montes
                                      e o olhar a derramar-se nos caminhos.

                                      Mas, de repente, eis um clarão, e a bruma
                                      de um círculo de prata se reveste
                                      e alteia-se elegante pelas várzeas,
                                      numa festa de luz e de saudade.

                                      Ó loira lua, lunando, lua cheia,
                                      em tuas mãos de concha e de magia
                                      aninha a noite até que uma outra aurora

                                      venha explodir-se em chamas de desejo!

(do livro "Cantos Circunstanciais)