Quem é o poeta Castro Alves?
Sou um homem que escreve e
declama seus poemas. Por amor, por compulsão e por herança. Um poeta brasileiro
nascido em 14 de
março de 18 47 lá na fazenda Cabaceiras, sete léguas distante de
Curralinho. Um baiano do sertão. Meus pais foram o doutor Antônio José Alves e
dona Clélia Brasília da Silva Castro, que também nasceu em um 14 de março.
A família mudou para Salvador
quando eu tinha sete anos de idade. Aqui completei o curso primário e fiz o
ginasial. Aos 15, em 1862, eu e meu irmão José Antônio fomos morar no Recife
para fazer o Curso Anexo, um ano de aulas preparatórias que habilitavam às
provas da Faculdade de Direito, onde fiz o 1º e o 2º ano. Lá, ainda em 62, pela
primeira vez tive um poema publicado pela imprensa, “A destruição de
Jerusalém”, no Jornal do Recife. No ano seguinte saiu no nº 1 de um jornal
acadêmico, chamado A Primavera, o meu primeiro poema contra a escravidão: “A
canção do africano”. Em 68, fui para São Paulo continuar meus estudos
jurídicos. Completei apenas o 3º ano, sem bacharelar-me por conta de problemas
relacionados à saúde.
Mas as publicações se
sucederam, tanto no Recife como em Salvador, no Rio de Janeiro e São Paulo;
muita vez em seqüência às declamações que eu fazia nas ruas, nos saraus e nos
teatros, sempre com grande sucesso, diga-se de passagem. Alguns desses versos,
junto com muitos inéditos, hoje fazem parte do meu livro Espumas flutuantes,
primeiro e único até agora, e que foi lançado em outubro do ano passado, aqui
mesmo na Bahia, para onde voltei no final de 69.
Fale um pouco mais sobre sua família e a infância em
Salvador.
Éramos muitos irmãos: José
Antônio, Zezinho, o primogênito, poeta que se suicidou aos 19 anos; eu, Antônio
Frederico de Castro Alves, era chamado de Cecéu pelos de casa e pelos amigos;
João, que faleceu recém-nascido; Guilherme, o quarto, também poeta; aí vem a
primeira mulher, Elisa; depois Adelaide, a Sinhá, minha preferida, mas que
ninguém nos ouça; e Amélia, uma bela poetisa. Bem mais tarde, Cassianinho,
nascido das segundas núpcias de meu pai.
Papai foi um médico famoso.
Estudou na Europa, foi professor da Faculdade de Medicina, homem de talento
artístico apreciável, com o que conseguiu grupar em nossa casa uma galeria de
pinturas estrangeiras e nacionais de grande fama. Dessa paixão resultou fundar
em 56, aqui na Bahia, a Sociedade das Belas-Artes. No lar, essa influência se
exerceu na nossa educação artística: todos inclinados à música, ao canto, ao
desenho, à pintura, às letras, favorecendo disposições da natureza que seriam
consagradas. Mas papai e mamãe tinham pouca saúde. Perdi-os cedo, ela de
tuberculose, em 1859, com apenas 34 anos de idade, e papai há cinco anos, aos
48.
Voltemos ao ano de 1854,
quando fomos morar na capital, no pequeno sobrado da Rua do Rosário no 1. Essa
casa, que marcaria de forma definitiva a minha vida, era cheia de lendas e
mistérios: uma linda moça, Júlia Feital, nela foi assassinada pelo noivo que,
louco de ciúmes, a fulminou com uma bala de ouro. Eu, menino, imaginava a cena
e tinha muito medo. Ainda bem que logo depois nos mudamos.
Assim que chegamos a
Salvador, fui estudar no Colégio Sebrão, uma escola tradicional, e depois no
Ginásio Baiano, de conceitos pedagógicos avançados para a época: estudávamos
várias matérias ao mesmo tempo, não recebíamos castigos físicos e ainda por
cima éramos incentivados a participar de torneios literários. Para mim, que já trazia
o amor à arte cultivado pela família, foi uma espécie de preliminar, desculpem
a imodéstia, para a glória futura. Celebrávamos principalmente as datas
cívicas, o que me deixava envaidecido, pois meu avô materno, José Antônio da
Silva Castro, foi um dos heróis da independência da Bahia, que só foi
conquistada em 2 de
Julho de 18 23. É que em muitas províncias, como o Senhor sabe, os
portugueses não acataram a proclamação do Sete de Setembro e queriam nos manter
atados à Coroa lusitana. Na Bahia, meu avô ajudou a derrotar as tropas
inimigas, para assim confirmar a independência do Brasil. Ele foi condecorado
por bravura no comando de um batalhão de voluntários, por ele mesmo criado. Vou
lhe contar uma coisa que pouca gente sabe: foi nesse batalhão que, sob suas
ordens, lutou a heroína baiana Maria Quitéria. Ainda vou escrever um poema em
homenagem a essa grande mulher.
Como o Senhor vê a poesia nesta segunda metade do séc.
XIX?
Olhe bem. A poesia na terra
dos Andradas, dos Pedros Ivos, e dos Tiradentes deve ser majestosa como as
matas virgens da América; arrojada como seus rios gigantes; livre como os
ventos que passam gementes por suas várzeas, e que zurzem os costados
pedregosos dos seus gigantes de granito. A poesia enfim deve ser o reflexo
desta terra. Isto no que toca à natureza, é claro.
No que toca às idéias desta
metade de século, eu diria que a poesia deve ser o arauto da liberdade - esse
verbo na redenção moderna - e o brado ardente contra os usurpadores dos
direitos do povo.
Quanto a sua forma, a
literatura, sendo a expressão da humanidade, libertou-se dos preceitos
asfixiadores da escola clássica - essa jaula do pensamento - assim como a
humanidade despedaçara o feudalismo - essa jaula da dignidade popular.
O povo - esse condor gigante
- sacudindo as longas asas pairou na ordem social por sobre a realeza, na ordem
científica por sobre a autoridade. O espírito popular tem sido iluminado pelos
luzires do cometa da civilização.
Tudo tende a idealizar-se. No
entanto, lanço uma censura a dois erros, que em geral permanecem em nossa
literatura, e neles eu sei que a minha poesia não está:
Um - a falta de brasileirismo
nas composições. O segundo erro, que ainda lavra, especialmente na Bahia, é o
classicismo. Deus me livre de maldizer das obras-primas que a antiguidade nos
legou. Não. Homero, Dante, Virgílio e outros hão de ser sempre admirados. Mas
não queirais, homens da atualidade, mandar, como primor de escultura, uma
cabeça de esfinge para a Exposição, nem apresentar nos banquetes de Napoleão
III a paródia dos vasos soterrados de Pompéia... passou esse tempo... A poesia
hoje é Byron, Barthélemy, Lamartine, Victor Hugo - esses Cristos humanos.
De que forma o Senhor situa a sua obra dentro deste
contexto?
É muito difícil a um poeta
situar sua própria obra no contexto de uma literatura. Talvez possa dizer que
segui um caminho que é normal a todo escritor: o de fazer com que a vida e a
obra entrem em acordo e possam viver bem juntas.
Olhe bem. Hoje, a palavra da
poesia, além de ser íntima, também deve ser cívica. Tenho o sangue militar do
meu avô e cheguei até a me alistar no Batalhão Acadêmico de Voluntários que foi
à Guerra do Paraguai, mas nunca fui um apologista da guerra. Amo sim a minha
pátria, luto pela abolição da escravidão, canto os feitos heróicos, as batalhas
vitoriosas contra a opressão e confesso o meu amor em tom vibrante; só em
louvor ao Dois de Julho escrevi cinco poemas. Muitos dizem que minha obra está
composta de uma parte política e de uma parte lírica. Penso que vigora sempre o
mesmo amor à humanidade, sob roupagens diversas: amor coletivo e amor pessoal,
e não saberia dizer qual o mais importante.
Acho que o poeta deve falar
aos corações. Eu falo. Mas, não é com sussurros que se incendeia o público; é
com entusiasmo, dramaticidade, retórica. O poeta é às vezes um corcel sem
freios... Eu tenho consciência de que faço alguns poemas para voz alta, e não
para leitura com um chá, no aconchego das cadeiras de balanço. Algumas vezes,
anoto ao lado do texto: “Não se publica”. Não sei se será publicado, pois tenho
a certeza de que o poeta, quando muito, é o dono dos versos, mas não é nunca o
dono do destino do poema.
Particularmente, acho
exagerado o gosto pelo doentio que os poetas da geração anterior a minha
desenvolveram. Eles estavam voltados para eles mesmos, amavam a musa distante,
idealizada, intocada e etérea. A minha amada é de carne e osso (o poeta sorri).
Eu aposto no amor, na vida; às vezes perco, às vezes ganho... Deixo aos
críticos do futuro o julgamento do meu trabalho.
Que figuras exerceram influência na sua formação de
escritor?
Tudo o que o escritor vê,
vive ou lê o influencia. Assim, sou filho de Horácio, de Byron, Barthélemy,
Lamartine, Musset, do grande Hugo principalmente... Aprecio Gonçalves Dias,
Álvares de Azevedo e Junqueira Freire, mas se tivesse que escolher apenas dois
brasileiros, citaria dos contemporâneos, meu amigo Fagundes Varela e dos
passados, o Casimiro de Abreu.
O Senhor está começando a ser chamado “O poeta dos
escravos”. Como se sente?
Eu me orgulho do epíteto.
Estou, inclusive, na fase final de negociações para a impressão de meu livro Os
escravos, que até o final do ano será publicado. A escravidão é uma das
mazelas, talvez a mais horrenda, que devemos combater em prol da liberdade. É
certo que, desde 1850, instituíram-se pesadas penas para o tráfico negreiro, já
abolido pela legislatura de 31, mas ainda vigente. Há dois anos foi proibida a
venda de seres humanos em pregão público e até o fim deste ano - não sei se o
Senhor sabe - será votada a Lei do Ventre Livre. Mas é pouco. Muito pouco.
Sempre fui devotado às causas
sociais. Fundei, com Rui Barbosa - meu antigo colega do Ginásio Baiano - e
outros alunos da Faculdade de Direito, a Sociedade Abolicionista do Recife.
Esse pendor abolicionista vem do berço. Lembro de papai a reclamar, sempre, do
tratamento cruel que era dado ao negro. O amor que eu tive e tenho pela minha
bá, que já se foi, a negra Leopoldina, minha ama de leite, minha segunda mãe, a
me contar as histórias de senzalas, mucamas e amores proibidos... O meu tio, o
alferes João José, herói da Guerra do Paraguai, brincando comigo de cavalinho,
montado em seus joelhos, dizendo-me: “A liberdade, filho, é o maior bem do
mundo”. Ah! Como essas coisas ainda me comovem...
Ser chamado de “poeta dos
escravos” é uma honra. Acho, porém, que não diz tudo; sempre quis ser “O poeta
da Liberdade”. E para mim, Abolição e República são palavras quase irmãs: uma
puxa a outra, naturalmente. Tanto que, em paralelo à minha luta pela libertação
dos escravos, participei também de alguns comícios republicanos. Lembro-me bem
de um deles, dissolvido pela polícia, quando criei de improviso os versos de “O
povo ao poder” (nesse momento o poeta abre um sorriso e levanta-se, com
esforço, da cadeira de balanço austríaca). A segunda estrofe desse poema começa
com dois versos que agitaram a multidão, aos gritos e assobios (o poeta de pé,
com a voz já rouca e entrecortada por um pigarro renitente):
A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor.
Senhor!... pois quereis a
praça?
Desgraçada a populaça
Só tem a rua de seu...
(um acesso de tosse
interrompe a fala; ele se senta novamente, e com dificuldade termina a estrofe)
Ninguém vos rouba os castelos
Tendes palácios tão belos...
Deixai a terra ao Anteu.
Desculpe-me, Senhor...
Desculpe-me... (aparentemente refeito) Prossiga, prossiga...
Além dos comícios
republicanos e da campanha abolicionista, é sabido que o Senhor tem participado
de debates sobre a liberdade de imprensa e de muitos outros movimentos civis,
como a luta pelo voto feminino. Por outro lado, as discussões literárias também
não foram poucas. Fale-nos sobre sua polêmica com o poeta Tobias Barreto.
O Tobias? Isso é coisa do
passado, não tem mais importância... Nem sei se vale a pena voltar ao assunto.
Mas o que posso dizer?... Vamos ver...
Começamos como amigos -
temos, inclusive, poesias dedicadas um ao outro; passamos a colegas,
tornamo-nos rivais e acabamos inimigos. Intrigas pessoais e literárias.
Discordamos em quase tudo, tanto na poesia quanto no teatro. Olhe que nossos
desencontros se acaloraram a partir de 66, quando ele teve o desplante de, em
público, dizer que a atriz Adelaide Amaral era superior a minha amada D.
Eugênia Câmara, um talento fulgurante que Portugal nos legou; inigualável, como
o Brasil jamais tivera oportunidade de assistir.
O Senhor Tobias Barreto é
feio, velho, escreve mal e declama pior ainda. Não conhece a língua que fala, o
significado das palavras; já o aconselhei a fazer, de quando em quando, uma
viagenzinha ao Morais. Nos recitativos fica nervoso, tem um jeito desastrado,
não controla a voz. Não possui o domínio cênico que eu tenho, se veste mal. Eu
entro no palco vestido de negro, chique, com uma flor na lapela, óleo nos
cabelos, madeixas minuciosamente espontâneas e pó-de-arroz no rosto, para
parecer mais pálido. Começo logo com uma das minhas bombas “O século”, “Pedro
Ivo”, “Visão dos mortos”..., com resultado previsto e certo: a platéia me
ovaciona. Lembro-me de um sarau em São Paulo , organizado pelo Arquivo
Jurídico, no Salão Concórdia. Nessa noite todas as honras foram minhas; o
entusiasmo tocou ao delírio, quando arrematei a última estrofe de “Visão dos
mortos” e, a pedido geral, encetei “O livro e a América”. Se algum dia obtive um
triunfo, não foi noutro lugar. Até a senhora do cônsul inglês Richard Burton
veio entusiasticamente dizer-me: “Mim gostar muito de sua recitativa” (rindo e
imitando um sotaque inglês).
Atualmente não tenho mais
debatido com o Tobias Barreto. Como o Senhor sabe, pouco tenho saído de casa. A
minha última declamação em público foi, se a memória não me falha, em 10 de
fevereiro deste ano, no salão nobre da Associação Comercial da Bahia, quando se
realizava ali um meeting em favor das famílias francesas sacrificadas pela
guerra franco-prussiana. Eu recitei o poema “No meeting du Comité du Pain”,
escrito no dia anterior. Fiz especialmente para a ocasião.
Aproveitando a sua lembrança, o Senhor poderia nos
falar da grande atriz D. Eugênia Câmara?
A minha admiração pela atriz
D. Eugênia Câmara se confundiu com meu amor pela mulher Eugênia. Quando a vi
pela primeira vez, no palco do Teatro Santa Isabel, no Recife, eu tinha 16 anos
e ela 26. De minha parte, amor à primeira vista. Ela era a estrela do drama
Dalila, de Octave Feuillet. Difícil descrever o impacto que a presença dela
exerceu sobre mim. Digo apenas que ela foi a mulher mais importante da minha
vida, a musa celeste que me arrastou, como um turbilhão, ao mais profundo fundo
dos cafundós do inferno. E ainda mais, o que muitos não sabem: é poetisa. Já
tem dois livros publicados.
Escrevi para ela o drama
Gonzaga ou A Revolução de Minas, onde falo de liberdade, escravidão, traição,
paixões... em suma, de tudo que atormentava ou deliciava minha existência, e se
confundia com a própria Eugênia, para quem, é evidente, eu havia reservado o
papel principal. Meu sonho era vê-la em cena interpretando meu texto.
O nosso amor foi sempre
tumultuado. Em 66, após um longo período de indecisões e recuos, que nunca
soube se eram meus ou dela, finalmente consegui arrancá-la do empresário com
quem vivia, e levei-a junto com a filha, para morar comigo num subúrbio do
Recife. Nosso ninho de amor... Dediquei-lhe muitos poemas... Ah! Bons tempos
aqueles...
No ano seguinte, fui para a
Bahia, levando minha mulher e uma certeza: iríamos conseguir encenar o Gonzaga
em Salvador. O que, de fato, aconteceu no dia 7 de setembro, no Teatro São
João, tendo à frente do elenco Eugênia no papel de Maria, a Marília de Dirceu.
Foi uma brilhatura como há poucas! Fui chamado à cena depois de cada ato, sob
estrondosa ovação. Não satisfeita, a multidão carregou-me em triunfo, sobre os
ombros, até minha casa. Tive um triunfo como não consta que alguém tivesse na
Bahia. Era a glória, mas era a glória baiana. Até aí a alegria do sucesso e o
amor de Eugênia me completavam, mas eu queria a consagração nacional...
Foi por isso que o Senhor resolveu ir para São Paulo?
Sim, sim. Foi com essa
intenção que decidi continuar os estudos de Direito em São Paulo ,
interrompidos quando viemos para Salvador. Eugênia foi comigo. Incluí no
roteiro de viagem uma visita ao Rio de Janeiro, onde conheci o grande escritor
José de Alencar. Chegamos a São Paulo em março de 68, a terra de Azevedo,
cidade das névoas e mantilhas, ainda acanhada e provinciana, onde não há senão
frio, mas frio da Sibéria; cinismo, mas cinismo da Alemanha, um tédio infinito.
Entretanto prefiro São Paulo ao Recife, apesar das péssimas recordações daquele
tempo, pois foi lá que o nosso amor chegou ao fim. O meu objetivo era terminar
os estudos na Faculdade do Largo de São Francisco e o de D. Eugênia retornar
aos palcos. No início retomamos a vida intelectual e boêmia, freqüentando
saraus e salões, sempre com muito sucesso. Porém, rapidamente, o nosso relacionamento
se deteriorou. Eram cada vez mais constantes as nossas desavenças. Cenas
violentas, ciúmes, brigas, precárias reconciliações. Sopravam-me histórias de
adultério. No entanto, sei que ela me amou, como sei que, talvez, meu amor
tenha sido insuficiente para sua paixão. Não a recrimino. Em determinado
momento, largou a carreira para me seguir. Depois, me largou para seguir a si
própria. Rompemos em 68 e a última vez que a vi foi no ano seguinte
apresentando-se no Teatro Fênix Dramática, no Rio de Janeiro, quando pude lhe
oferecer meus derradeiros aplausos. Despedi-me de Eugênia com a poesia “Adeus”,
que termina assim (acomodando-se na cadeira):
Quis te odiar, não pude. -
Quis na Terra
Encontrar outro amor. -
Foi-me impossível.
Então bendisse a Deus que no
meu peito
Pôs o germe cruel de um mal
terrível.
Sinto que vou morrer! Posso,
portanto,
A verdade dizer-te santa e
nua:
Não quero mais teu amor!
Porém minh'alma
Aqui, além, mais longe, é
sempre tua.
E Eugênia me respondeu com
uma outra e que sei de cor. Vou dizer-lhe a primeira e a derradeira das 14
estrofes (a voz um pouco mais baixa):
Adeus, irmão desta alma,
digo-te Adeus!
Mas deixa que eu evite esse -
jamais! -
Que o céu se compadeça aos
rogos meus
E um dia cessarão teus e meus
ais!
Adeus! Se um dia o Destino
Nos fizer ainda encontrar
Como irmã ou como amante
Sempre! Sempre me hás de
achar.
Como foi seu contato com José de Alencar?
Ah! Esse foi um dia
inesquecível: 17 de
fevereiro de 18 68. Levei uma carta de apresentação do estadista
baiano Dr. Joaquim Fernandes da Cunha, amigo de meu pai e padrinho da minha
irmã Amélia. Visitei Alencar no Rio, como já lhe disse. Ele residia lá nos
cerros da Tijuca. Segundo suas palavras, lugar puro e são, montanha encantadora
que a natureza colocou a duas léguas da Corte, como um ninho para as almas
cansadas de pousar no chão. E foi lá que o primeiro literato brasileiro
provou-me que a ninguém cedia em cavalheirismo e urbanidade.
Sabendo que tocava numa corda
sensível do mestre, além de declamar alguns poemas, li para ele o Gonzaga. Meu
anfitrião era um obcecado pela construção de um teatro brasileiro, mesmo tendo
fracassado na tentativa. Ele pregava um teatro baseado em nossa História -
exatamente o que eu fizera, ao invocar em meu drama a Inconfidência Mineira. A
receptividade foi muito boa, a ponto de Alencar recomendar-me a outro talento
que se firmava na literatura fluminense: o jovem Machado de Assis, que me
visitou no domingo de carnaval. O resultado desses encontros se traduziu nas
crônicas publicadas no Correio Mercantil, a de Alencar em 22 de fevereiro e a
de Machado em 1o de março, ambas muito favoráveis ao Gonzaga. Saiba que ainda
guardo comigo esses exemplares do Correio.
Quando e por que o Senhor decidiu deixar o sul do país
e retornar à Bahia?
Devido a meus problemas de
saúde; não ia nada bem. Quando me separei de Eugênia, a minha sorte piorou. Não
sai da minha mente o fatídico dia 11 de novembro de 68 , em que para espairecer
minha solidão dirigi-me ao Brás, onde costumava caçar; era um mato cerrado,
animais em abundância. Fui saltar uma pequena valeta e um disparo da espingarda
atingiu-me o pé. Como todos sabem, surgiram complicações no ferimento e os
antigos padecimentos pulmonares acordavam, impressionantes. Então busquei ajuda
médica no Rio de Janeiro e o diagnóstico foi implacável: teria que amputar a
perna esquerda no seu terço inferior. Devido ao meu estado debilitado, a
intervenção cirúrgica se daria sem anestesia, pois a cloroformização seria
perigosa. Se não operasse poderia morrer; então reuni todas as minhas forças e
dei a autorização aos médicos, em tom de blague, disfarçando sob o riso, a dor
física e moral da mutilação que deveras sentia. Ainda lembro de minhas
palavras: “Corte-o, corte-o doutor... ficarei com menos matéria que o resto da
humanidade”.
A convalescença foi demorada,
agravada pela tísica renitente. Após alguns meses consegui levantar-me com a
ajuda de um pé de madeira e apoiado em muletas. Porém , não me entreguei ao
infortúnio. Nesse período de recuperação, estive hospedado na casa de meu
grande amigo Luís Cornélio, cercado de carinho e atenção. Não deixei de
escrever e recitar meus poemas para o pessoal da casa e para as bonitas moças
que me visitavam e inspiravam. É... Não foram tão maus aqueles tempos (risos).
No entanto, os meus pulmões não iam nada bem; acessos de tosse e febre
deixavam-me constrangido. A saudade da minha pátria e a necessidade de cura em
outro ambiente me fizeram retornar ao aconchego da família. Em novembro de 69,
deixei o Rio de Janeiro. A travessia, transposta a enseada maravilhosa da
Guanabara, sugeriu-me, com a saudade e o desengano, a idéia de reunir os meus
poemas num volume que denominei Espumas flutuantes. Os meus versos eram as
espumas que se formavam, flutuando à volta do navio. Essa lembrança está
relatada no Prólogo do meu livro.
Quais são seus planos para o futuro?
Como já lhe disse, estou com
Os escravos pronto, deve sair até o final do ano ou, no máximo, no princípio do
ano que vem. A cachoeira de Paulo Afonso, livro de poemas, também já está
acabado. E quero publicar o texto do meu Gonzaga, que já viajou por todo o
Brasil, e, como o Senhor sabe, com grande sucesso de público e de crítica.
Infelizmente nos últimos tempos não tenho trabalhado muito, a minha saúde não
anda boa, e os médicos e as manas não querem que eu faça esforço. Para dar-lhe
esta entrevista, tive que impor a minha autoridade de irmão mais velho (risos).
Mas Deus vai me dar ânimo, pois tenho planos de voltar a declamar em público,
no máximo daqui a um mês. Já encomendei até um novo terno preto, bem cortado,
pois estou um pouco mais magro e quero me apresentar bem. Se Deus quiser.
NOTA: O poeta Castro Alves faleceu às 15h30 min do dia 6 de julho de 18 71, um mês
após esta entrevista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário