sexta-feira, 5 de maio de 2023

O Príncipe e sua Palavra - Giselda Medeiros


Para Artur Eduardo Benevides

A ti, ó Príncipe da Poesia,mm,

meu louvor, feito prece,
feito estrela, e arco-íris
no céu de nossa amizade.
Glória a ti, ó deus sagrado da palavra,
essa força dionisíaca,
que em ti habita e rumoreja,
para resplandecer bela
no coração de teus súditos.
Abençoado sejas, ó Príncipe
Divino da Poesia,
em todos os séculos dos séculos,
por saberes espalhar sementes da palavra
grávida de Poesia!

domingo, 13 de fevereiro de 2022

CRÔNICA DE TÚLIO MONTEIRO

 

Tauaçu do meu peito


Este dó de peito. Esta nota tão relapsa e ao mesmo tempo tão complexa me foi arrancada do nó – pomo de adão – há tempos. Eu que já gritei, esperneei e nunca tive tanto esquecimento em meu cérebro, hoje transtornado pelo tempo me questiono: – Ora, se amar nunca me trouxe a exatidão do termo AMOR dentre os corações que habitei, por tantas mãos e corpos que já passei, por quê e para quê amar? Nunca me coube aportar meu barco em porto seguro, mas, sim, condenado fui a navegar por mares de tormentas, de sargaços, sempre a desbancar-me em ondas gigantescas. Olhos fora d'água em gritos tão altos busca de um tauaçu que fosse para ancorar a jangada desse coração nada perene no que diz respeito a fixar amarras.


Entre sereias e Marias fui sempre Tritão pelas auroras de meu Mar. O que fazer se nasci assim, um tanto curumim, outro tanto, velha alma carmim. Antigo senhor que se pensava dono de seus dons a esporear o Tempo, açoitando meu Destino aos quatro ventos. Faca nos dentes, arrebentando o que vinha pela frente. Até descobrir o que são a paixão e a morte, eternas companheiras nesse ínterim chamado Vida, pois de rede branca, cachorro latindo me esperando, nunca soube eu o que era varanda arrodeada de beirais e flores.


Na verdade sempre fui verde menino e remoto senhor a caminhar sobre as brasas de corações femininos; uns ferinos outros especialmente felinos. E fui gastando meu precioso Tempo e o valioso Tempo de outros entes queridos(?) de uma forma tal que o que me restou foi o absolutamente nada, um certo carma, nirvana, por fim, a qualquer instante me bater à porta, a me dizer: - vamos lá, chegou tua hora.


Um gosto de cânhamo habita-me a língua e a boca, trazendo-me a certeza única que morrer não dói tanto quanto se estar vivo e inativo, já que só o que restou desse que bate no peito como alento lembranças; e lembranças são como cultivar ventos, tempestades, temporais e escassezes.


Entram dias e saem dias sem nada do que previ aconteça. Estarei já eu morto vivendo no tal purgatório dos suicidas? Será que simplesmente já fui e naturalmente não sei disso, ou estou mesmo louco vendo o porvir sem nada poder fazer? Perguntas! Para que servem tais substantivos femininos interrogativos, se o coração feminino já é um interrogatório sem defesa de causa?! Ah! As mulheres, entes, jeans, flores de jardins. Como foi bom dividir-me entre vocês nessas décadas a caminhar sem tréguas nos campos da guerra-vida. Perdi muitas batalhas e fui vencedor em tantas outras que se me chegasse a hora agora, diria eu àquela que sempre chega silenciosa, diáfana e medonha a sentar-se à beira de um lugar qualquer para nos esperar com a paciência de sempre: – Leva-me, então, pois se vim a esse Mundo para coabitar-te frente a frente, cabeça a cabeça, desta vez tu perdeste mais que eu, maldita e infinita Morte!


Sobre o Autor:

Túlio Monteiro – Escritor, biógrafo, historiador e crítico literário. Graduado em Letras pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Grau de Especialização em Literatura e Investigação Literária, também pela Universidade Federal do Ceará  –  UFC, com a monografia: Intertextualidade e Fluxo da Consciência na Obra de Graciliano Ramos.

Membro efetivo da Academia Internacional de Literatura Brasileira - AILB - Cadeira de número 246 - Com sede em Nova York -  Estados Unidos da América 

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

CONTINENTE E CONTEÚDO - Vianney Mesquita

 Regalos de Alana Girão Alencar

CONTINENTE E CONTEÚDO


      Vianney Mesquita [1]



O sábio não entesoura. Quanto mais dá aos outros, tanto mais ele tem [Lao-Tsé ou “Velho Mestre”. Filósofo chinês. 531 a.t.p.  [2] ].


    Hospedar uma dádiva proveniente de uma pessoa com as proporções humanas e intelectuais da polígrafa coestaduana Alana Girão de Alencar não conforma algo ordinário, como se fora, v.g., uma lembrança de aniversário, presente em visita ao domicílio, estreme recordação física de um colega adepto profissional e tantas e repetitivas e cediças e espontâneas [3] ações semelhadas.

 

    Equipara-se  – isto sim -  a uma notícia de aprovação em certame público – como, num exemplo, para o curso de Medicina da UFC - a uma mensagem da Caixa Econômica cientificando acerca do benefício de um prêmio lotérico, ao aviso de crédito em conta de um precatório (ora correndo tanto perigo!), à certeza de que é boato a informação de haver nascido na mesm’Áustria [4]  outro Adolfo Hitler, à confirmação de que Jorge Mário Bergoglio vem tomar com você um golpe de café em sua casa e lhe entregar um prefácio por ele feito para um livro seu, o qual circulará por todo o orbe cristão... et tot alia.

   

    Acolher como presente estas Metáforas de uma Análise, a mim trazido à porta de casa pelo filósofo, poeta e seu marido, Dr. Júlio César Martins Soares - também autor de alteados comentos na quarta-capa do livro - configura satisfação inusitada, porquanto não me acho  credor de tamanha mercê, pelo fato de jamais haver logrado o provimento de poeta, isto é, aquele que, a igual ou quase semelhantemente a Alana, oferece encantadores versos brancos, sem a  obrigatoriedade da rima, para capturar o leitor com a volúpia, a habilidade reflexiva, a apropriação verbal arguta e oportuna e o gozo espiritual do seu fascínio de versejadora a mancheias.


    Malgrado, vez por outra, eu cometa a grade do soneto, somente preenchendo os claros dos tabiques com as rimas (o que a mim me parece trivial), não me devo conceber como um vate dignitário desse nome, pois será imprescindível trabalhar com a alvura das estâncias, sem consoar palavras, alcançando, entretanto, as delícias do pensamento e a estesia da vida por intermédio da manifestação em língua prosa e poemada, ao recorrer ao exercício figurado dos distintos tropos literários, de vocábulos e locuções, à maneira como procede a produtora sob glosa, para atulhar de encantamento esse mais recente produto de sua agricultura superior.


    Impressionou-me, no primo instante, o continente físico, cujos autores – vários – estão indicados na Ficha Técnica da Gráfica e Editora Tiprogresso, coincidentemente, oficina que tipografou, sob a diligência do Dr. Luís Esteves, meu primeiro trabalho editorial mais extenso – Sobre Livros – Aspectos da Editoração Acadêmica (Fortaleza/Brasília: Edições Universidade Federal do Ceará/PROED-MEC, 1984, 184 páginas).


    Ao começar do embrulho – unidade de ideia ora em descostume, à qual recorro somente a jeito de evocação pueril – já divisei poesia, pois primorosa a técnica utilizada para revestir o volume, colado nas divisas do papel com o monograma “A” em parafina colorida, fato veramente significativo e promissor do que viria a ser, após desenrodilhada, a peça editorial.

  

    Mais um poema – isto é, tanto continente como conteúdo - é entrevisto na capa dura, dotada de admirável propósito gráfico (metaforizando as análises da Autora), adornada com as notações lúcidas e perfilhadas de profundez literofilosófica e histórica do Dr. Júlio César, às quais acedo na totalidade, de sorte que as firmaria como gravadas estão. Aqui, decerto, porque foi projetada a cobertura da obra em papelão espesso, conferindo-lhe mais durabilidade, seria difícil, operacionalmente, usar guarnições (orelhas), de modo que os escólios foram esmerada e corretamente transferidos para a quarta capa.


    Também me ative às fontes da antiga máquina de datilografia, com as letras muita vez borradas, a qual, empós transitar em curso por anos a fio, foi sobrepujada e expulsa, num átimo, pelos relampos [5] da Informática e o brilho da internet, mas aqui alvitrada, inteligentemente, pelos técnicos do trabalho sob relação, propósito a conceder, pelo menos para mim, um motivo a mais para adornar-lhe o continente e o conteúdo


    Relativamente ao teor da matéria, para se jungir à designação dessas despresumidas e rarefeitas notas, relativamente ao conteúdo, rogo escusa junto

ao leitor, ao explicar que, via de regra, não me afaço a adentrar comentários de tal dimensão. Isto porque, se analisar, no plano do detalhamento, cada poema, dele retiro o apéritif dexième plat de sua refeição poética, uma vez que lhe subtraio a ensancha de, por si mesmo, decodificar as intenções da Poetisa [6], quando emprega os vários expedientes da língua portuguesa e aplica os suntuosos conhecimentos que ajuntou à proporção do tempo, na qualidade de intelectual convenientemente aparelhada, nomeadamente na seara da Psicologia, para aportar à limpidez estética e à significação racional de seus poemas. 


    Impende exprimir, no entanto, o fato de que li, em profundidade, as peças deste compêndio (algumas mais de uma vez), daí por que se lobrigam, em não raros lances, decodificações distintas após as leituras, até passíveis do entendimento transverso ao da própria Autora, de tal sorte que a opinião escrita e publicada não há de influenciar a recepção das mensagens por parte dos demais consulentes.


      Manifesto, entretanto – e isto, penso, em nada confunde o consultante quando for recepcionar os pés poéticos insertos nesta produção – o juízo segundo o qual os versos níveos de Metáforas de uma Análise conformam a maquinação de formosura, aviamento intelectual e ardor inventivo de uma substância humana tão alevantada, posicionada como escritora de erguida axiologia poética, uma das mais bem postas do Brasil e que conduz a se rememorar a brandura e a sinfonia de autoras de paixão internacional, como, entre tantas, Cecília Meireles, Gabriela Mistral, Giselda Medeiros, Neide Azevedo Lopes, Rosalía de Castro, Regine Limaverde e Florbela Espanca.


    Assim, me enxerguei em elevação e sublimidade, ao ler este rebento novo, para mim, a obra magna da escritora cearense Alana Girão de Alencar.


    O immensa gratia!


   

   

Notas


1 Professor adjunto IV da Universidade Federal do Ceara´. Escritor (21 livros) e jornalista. Imortal da Academia Cearense da Língua Portuguesa, Academia Cearense de Literatura e Jornalismo e Arcádia Nova Palmaciana. Pertence à Associação Internacional de Jornalistas (Bruxelas – UE) e à Associação Brasileira de Imprensa.

2 a.t.p. – Pelo fato de a cultura e a ciência serem leigas, é recomendado não mais se usar a.de C. – Antes de Cristo. a.t.p. = antes do tempo presente. Católico praticante como sou, não fico satisfeito com isso...; porém, a laicidade nessas circunstâncias é recomendável.

3 Muito me apraz usar esta figura de linguagem-construção, chamada polissíndeto – emprego repetido de conjunções, neste caso, as aditivas.

4 Elisão. Desaparecimento da vogal diante da inicial vocálica da palavra seguinte.

5 Palavra dicionarizada. Usar sem receio.

6 Somente emprego vocábulos registrados no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. Não existe poeta mulher. A mulher é poetisa.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

O PORTUGUÊS QUE TODO MUNDO FALA E O GRAMATIQUÊS - Myrson Lima

CADEIRA Nº 14 - Academia Cearense da Língua Portuguesa
Parece que existem duas línguas no Brasil: aquela que as pessoas falam ou escrevem nas mídias sociais e a que é ensinada nas salas de aula pelos professores de português. O fenômeno não ocorre somente com o nosso idioma.

Existe um português mais formal, cultivado pelos letrados, ensinado nos compêndios, exigido nas provas de vestibulares e concursos. Quem o pratica procura obedecer aos preceitos da gramática dita tradicional e olha com desdém e ironia os desvios daqueles que lhe ignoram as regras. Tal linguagem predomina, por exemplo, na escrita dos livros, de textos acadêmicos, na correspondência oficial e comercial, na fala mais cerimoniosa de certos ambientes. Alguns de seus cultores mais radicais chegam a considerá-la a única forma aceitável de comunicação, assumindo atitudes de policiamento e de censura diante da linguagem espontânea e coloquial do povão. Ao usuário caberia falar como se escreve, seguindo, sem atenuantes, os ditames de uma gramática fixa e imutável.

No outro extremo, existem os que afirmam que o idioma é produto do povo, não um sistema de regras e princípios ditados pelos filólogos e gramáticos. O povo é o único soberano mestre da linguagem: suas sentenças são sem apelação e o uso tudo justifica.

Sob essa dicotomia, subsiste um sistema ideológico bem visível e o primado de uma forma de linguagem sobre outra revela, talvez, um determinado posicionamento filosófico e político. Uma pessoa de tendência conservadora, de ideias tradicionais, que acentuadamente valoriza o argumento de autoridade tende a aceitar unicamente a língua culta com um único padrão pelo qual se devem pautar todas as manifestações da linguagem em qualquer situação de comunicação. Ao contrário, aquele de princípios mais liberais, sensível às mudanças de comportamento em face das transformações que se operam na sociedade, procura, por sua vez, minimizar a importância da gramática e dos gramáticos como norteadores do bem falar e do escrever.

Matutando sobre isso, há de se reconhecer a existência e a necessidade do uso da língua, dita culta e, também, da língua mais espontânea e popular. Querer regê-las dentro do mesmo código seria negar-lhes as particularidades e suas funções específicas. A língua falada, por exemplo, jamais poderá ser idêntica à língua escrita e esta, por sua vez, não obstante o esforço do escritor, sempre será diferente, pois dispõe de múltiplos e variados recursos intransponíveis para a grafia.

A gramática, ensinada na escola, com seus princípios e normas, ocupa-se preferencialmente com a língua culta de menos uso que a língua falada pelo povo. Escrever, no entanto, de acordo com seus preceitos é justificável e exigido em determinadas situações de comunicação.

A noção de erro, em consequência, não é a mesma nas duas formas de comunicação. Aquilo que não é permitido, quando se redige em situações mais formais, pode ser justificado quando se usa a língua coloquial e espontânea na publicidade e nos blogs, por exemplo.

Querer a uniformização da variante culta e da popular seria pura utopia. Pretender, por outro lado, abolir o ensino da gramática na escola seria uma irresponsabilidade sem tamanho. A ela compete a importante missão de registrar os fatos da língua padrão, que se superpõe aos falares regionais, bem como estabelecer os preceitos não só do como se escreve (língua escrita), mas também de como se fala (língua falada). A demora dos registros dos fatos linguísticos, já amplamente empregados e assimilados no idioma, acentua não raro o descompasso entre o português da sala de aula e o português do povo.

A língua culta e a língua popular são ramos do mesmo tronco que mutuamente se completam e se enriquecem. Há espaço para as duas variantes. A escolha de cada uma delas vai depender da situação de comunicação em que se encontra o usuário da língua.

Tais diferenças não empobrecem o idioma, mas, pelo contrário, revelam a sua multiplicidade e riqueza.

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

EU SOU AQUELE QUE COME AS FLORES DO ANIVERSÁRIO - Crônica de Túlio Monteiro

“Refratário aos mistérios e enigmas do encantado, em atração constante pelo mito, pela magia, pelo difuso, pela penumbra da inconsciência, possui a grande ciência do texto lírico, belo, inovador e ousado. Travestido de compadre do diabo, é, entretanto, um romeiro devoto, capaz de fazer promessas e vestir o balandrau do Pobrezinho de Assis. Finge regar os caminhos de Satã para vencê-lo de tocaia e ganhar as graças de Deus.”  (Juarez Leitão)

I

Sábado cedo!
Como de costume levanta-se, esticando músculos e ossos já utilizados, amiúde, por mais oito décadas. Passara a noite nu, porque o nu nunca lhe fora mais que beleza, liberdade corpórea, utilização da carne em prol da satisfação mútua dos corpos que, um dia, acolheram o seu em alcovas muito ou nada corretas… o que definitivamente não lhe importava- já que sexo nunca nada lhe mais fora que o prata emanado das estrelas e luas do caleidoscópio estridente de gozos bramidos noites adentro, pois todo homem que não presta e se preza faz sua mulher perder a vergonha, gemer e voltar sempre aos seus braços e beijos. Pois como a Lua excita a mente dos loucos, desperta o ciúme e a paixão dos poetas, levanta o nomadismo dos ciganos e faz com que o assassino vislumbre de longe a sua vítima, assim as mulheres e os homens livres de dogmas puritanos conduzem seus pares à sublimação e ao clímax … a Eros e Tanatos.
Não se queixava mais da vida, apesar de já ter perdido todos os “bicos” que fazia nos jornais, andando agora doente, os nervos escangalhados, o coração dando arrancos, muitas vezes infligindo-lhe noites de insônias rebeldes que o levavam a pensar em crimes, suicídios e outras coisas absurdas, satânicas até.
Sim! A velhice havia-lhe chegado qual grades intransponíveis. Olhos mirados nos espelhos da escrita, enxergava-se agora espectro, um velho sem família, sem parentes ou amigos. Um trapo, um bicho indefeso atirado aos abutres amontoados em colinas pontiagudas e labirínticas que certamente ocultam dragões, herdeiros, talvez, daquele que habitou – e por lá ainda durma pesado sono – as profundezas do Alto dos Angicos, pedaço do Ceará que o Coronel-garanhão Antônio José Nunes, em século já ido, arrebatou das mãos dos Tremembés.
Trinca-se o espelho da imagem envelhecida. Que se fossem, malditamente, para o mais abissal dos Infernos de Dante as lembranças de tempos, felicidades, sofrimentos e corpos passados. Valia-lhe mais o ali e o presente.
Oito décadas e meia pelo setembro que se aproximava, já tantas vezes havia sentido a morte roçar-lhe sobre os ombros com seu carrilhão de plumas eriçadas como a cauda de um réptil venenoso, que no mundo nada mais o assustava. Preferia repetir Fernando Pessoa e “exigir de si mesmo o que sabe que não poderia fazer. Pois não é outro o caminho da beleza”. Ou Byron, “onde todas as coisas que nasceram, só nasceram para morrer. E a carne é uma erva que a morte ceifará”.

II

A manhã daquele sábado já deslizava para a tarde quando decidiu sair, deixando de lado o passado remoto que sempre teimava em aborrecer-lhe com coisas que só lhes serviam de entrave na vida. O dia estava quase pelo meio e flanar pelas ruas com ou sem saída da velha Gentilândia seria o remédio maior para o tédio que o invadia. Era o revelho dragão que mais uma vez deixava a Vila Cordeiro para serpentear os ares da cidade que escolhera para servi-lhe de caverna.
Voos tranquilos rumo ao centro da cidade, quase nunca repetia percursos, algo assim sem querer deixar pistas, rastros aéreos de seu Norte Verdadeiro: a Literatura! E como escrevia furiosamente bem aquele sábio dragão, riscando os céus da prosa e da poesia com a maestria pertinente apenas aos guardiães da literariedade de primeira linha.
Entretanto, no final daquela manhã de sábado, o monstro fabuloso resolveu parar seu bater de asas e mergulhar em direção ao chão. Seguiria andando, podendo, assim, ver e rever velhos conhecidos que o cumprimentavam quase em reverência sempre que seus pés e braços alados tocavam o solo infértil e relegado aos desprovidos de almas poéticas. Nessas horas, transmutava-se em humano, disfarçando-se para não dar na vista, nem ser perseguido pela legião de admiradores que arrebatara desde seus primeiros anos de escrita.
Entretanto, desistir de seu voo e descer ao solo tornou-se erro fatal. Ao tentar mudar de calçada, não percebeu que em sua direção um outro dragão se aproximava impiedoso, alta velocidade, urrando em voo rasante e nefasto.
Foi pego com a guarda baixa o maior dos dragões brasileiros.
A pancada sofrida por seu frágil disfarce humano lançou-o longe, o asfalto como campo de batalha recebendo gotas de seu sangue real. Sem lhe dar chances de defesa, seu algoz o atingira em cheio no tórax e cabeça, incapacitando-o de rufiar asas e voltar a sua toca, onde certamente curaria as feridas como tantas vezes já ocorrera em combates passados. Estava ferido de morte, o monstro áleo de Santana do Acaraú.
Ainda transmudado em corpo de homem, foi levado a hospitais onde bravamente agonizou por mais quase um dia, sob os cuidados dos sinceros amigos que sabiam de sua secreta identidade. Outros de sua estirpe? De uma casta linhagem que atravessou os séculos misturando-se entre homens comuns para acalmá-los nas horas de mais angústia e ânsia por poesias e um pouco de paz? Nunca o saberemos!
Foi sepultado, como era de seu desejo, em solos da Fazenda do Dragão, encravada nas terras de São Francisco do Estreito, onde, segundo narra certa lenda, ele nascera em forma de gente.
Naquela mesma tarde, dizem os que por lá estavam presentes, um vento Aracati insistentemente soprava aos ouvidos dos iniciados um poema há muito escrito pelo Dragão que se fora:

O menino jaz atropelado:
Nossa Senhora, salve o menino!
Deixe que eu morra em seu lugar.
Deixe que eu morra por ti, menino.
Deixe que eu morra atropelado.
Nossa Senhora Salve o menino! …

(“Desastre às 13h e 30 min”. ln: As Tágides, (1998), de José Alcides Pinto)


JOSÉ ALCIDES PINTO, ficcionista e poeta, nasceu no dia 10 de setembro de 1923 em São Francisco do Estreito, distrito de Santana do Acaraú, no Ceará. Filho de José Alexandre Pinto, capitão de tropa de cigano, e de D. Maria do Carmo Pinto, descendente dos índios Tremembés, que se fixaram na povoação de Almofala, no Acaraú, no fim do século XVII.
Diplomou-se em Jornalismo pela Faculdade Nacional de Filosofia da antiga Universidade do Brasil e em Biblioteconomia pela Biblioteca Nacional. Fez o curso de especialização em Pesquisas Bibliográficas em Tecnologia no Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação (IBBD) e o Curso de História da Américas ela Universidade do Brasil.
Jornalista profissional, tendo ingressado na imprensa muito jovem. Colaborou nos Suplementos Literários do “Diário Carioca”,’ “O Jornal”, “Diário de Notícias”, “Correio da Manhã”, revista “Leitura” e em toda a imprensa de Fortaleza Pertence à Associação Brasileira de Imprensa (ABI), ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro e Sindicato dos Jornalistas Liberais do referido Estado.
Romancista, crítico literário, teatrólogo e poeta, tem livros publicados nesses gêneros, participando de várias antologias nacionais e estrangeiras. Recebeu o Prêmio José de Alencar da Universidade Federal do Ceará referente a obras no gênero Romance e Conto (1969). Coube-lhe, ainda, o Prêmio Categoria Especial para Conto (1970), concedido pela Prefeitura Municipal de Fortaleza. É o principal responsável pela introdução do Movimento Concretista no Ceará. Em 1972 foi incluído na Enciclopédia Delta Larousse.
Participou de antologias nacionais e estran­geiras. Ganhador de vários prêmios, entre eles o Prêmio Nacional da Petrobrás, na categoria conto, 1988, e o Grande Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), 1999. Foi pro­fessor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universida­de Federal do Ceará. Tem livros publicados na área do romance, novela, conto, teatro, poesia e crítica literária. É considerado um poeta de vanguarda e experimental.
José Lemos Monteiro, escri­tor e professor da UFC, escreveu um longo estudo sobre sua obra poética, intitulado O universo mí(s)tico de José Alcides Pinto publica­do pela Imprensa Universitária, em 1979, e que se constitui a pri­meira fonte importante de pesquisa de sua poesia, ao lado do livro A voz interior em José Alcides Pinto, do psiquiatra e poeta Carlos Lopes. Fortaleza. Edição do Autor, 1989; bem como um longo ensaio de Nelly Novaes Coelho – Erotismo, satanismo, loucura, na poesia de José Alcides Pinto Fortaleza, IOCE, 1984. Em 1996, o es­critor Floriano Martins organizou uma antologia crítica da obra de José Alcides Pinto – Fúrias do oráculo, editada pela Universidade Federal do Ceará. Também o professor e escritor Paulo de Tarso (Pardal), publicou um ensaio crítico intitulado O espaço alucinante de José Alcides Pinto, Edições da Universidade Federal do Ceará, 1999. A Editora GRD, Rio, editou em 1996 Cantos de Lúcifer (Poemas Reunidos), com prefácio de Cassiano Ricardo; e a Im­prensa Oficial do Ceará (IOCE), em 1984 lançou Antologia Poé­tica, organizada pelo crítico Rogaciano Leite Filho.

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

 Apreciação Literocientífica



SOB O ESPECTRO DE FUNDO E QUANTO AO PRISMA DA FORMA*

[Releitura]


Vianney Mesquita 



            Quanto mais lemos, tanto mais nos instruímos, e quanto mais meditamos, tanto mais estamos em condição de afirmar que  nada sabemos. [Francois-Marie Arouet -VOLTAIRE. Paris, 21.11.1694/30.05.1778 ].                   


Sempre nutri e conservei particular afeição pelo ofício-arte da Enfermagem, com suas vinculações estritas aos diversos ramalhos das Ciências da Saúde. Na decorrência de misteres profissionais e acadêmicos, desde largo ciclo temporal, travo incessante contato com os agentes desta nobre carreira, nomeadamente no âmbito da Universidade, na posição de consultor para assuntos linguísticos, gramaticais, semânticos e estilísticos, em produções de sua colheita, como peças científicas stricto sensu.


    Nessa relação simbiôntica, aprendi cedo a lhes apreciar o esforço exitoso de pesquisas, com subido potencial metodológico, resultados esclarecedores e aplicação prática imediata, numa expressão categórica do acompanhamento do estado d’arte desta atividade sublime por eles abraçada.


    Conquanto não perfilhem temas do meu trato universitário, muita vez – como sucede agora – sou conduzido a escoliar a respeito de trabalhos de sua lavra, especialmente quando editam livros, quase sempre provenientes de textos-base dos seus relatórios finais de mestrado e doutorado. Evidentemente, como o “sapateiro não deve ir além das sandálias” [Ne sutor ultra crepidam], cinjo-me, de ordinário, a analisar, tão-só, a propriedade de termos e dicções, como disse, certa vez, Gilberto Freyre, na qualidade de “mero mata-mosquito da ordem gramatical”.

 

    Vez por outra, entretanto, o afouto sapateiro de Plínio, o Antigo [Caio Plínio Segundo], acha de querer ultrapassar o calçado mostrado na pintura de Apeles de Cós e adentrar matéria avessa à sua intimidade, submetendo-se ao risco de laborar no engano.


    Como, entretanto, a temática de ordem geral – penso – não é território reservado de ninguém, vale a parêmia escolástica consoante a qual o exame da Ciência não tem por objeto o saber particular – totum individuatum ineffabile est – ou seja, o todo individualizado é inexprimível, de modo a inexistir, em tese, o conhecimento privado.


    Assim, sob esta razão (talvez) evasiva, penetro astuciosa e perigosamente outros saberes, não sem o cuidado de me liberar de tautologias e expressar heresias, no senso popular do termo, haja vista o terreno sempre movediço das temáticas não dominadas por quem, sem tir-te nem guar-te, com a maior sem-cerimônia científica, tenta comunicar-se em seara estrangeira.


    Ao levar em conta, porém, o preparo insuficiente de escrevinhador deserdado de mais alargado saber ecumênico, sou continente nos meus comentários, parcimonioso nos rasantes por teores a este estranhos, de sorte a ser bem-sucedido nessas pequenas empresas a mim cometidas pelas inexcedíveis atenções de meus consulentes, às quais, humildemente, acedo.


    Todos esses arrodeios e ambages serviram de aprestar o canteiro da obra, a fim de expressar o fato de O Cuidado à Família em Atenção Primária, livro da Prof.a Dra. Lígia Barros Costa, docente da Universidade Federal do Ceará, membra atuante da fina-flor da Enfermagem no País, representar a oportunidade de o leitor abeberar-se de conhecimentos bem meditados a respeito do cuidado à saúde da família, na relação elastecida de refleti-la e cuidá-la, objetivando, não só, a ausência de doenças, como também a higidez e o bem-estar, entendimento hodierno de saúde.


    Sobre ser o compêndio bem escrito, tanto sob o espectro de fundo quanto jungido ao prisma da forma, diviso o maior proveito deste volume no ato de fazer convergir a chamada communis intellectus ao saber unificado parcialmente, este provindo da anterior como vertente natural da Ciência, não devendo o pesquisador, por hipótese alguma, fazer pouco caso de seu valor e serventia.


    A tarefa de relacionar os dois hemisférios de saberes procedida pela Autora objetiva – creio, com sucesso – valorizar, às derradeiras consequências, o ato de conceder atenção à família, de maneira afastada do biologicismo de ontem, praticado agora, sistêmica e holisticamente, privilegiando todas as instâncias da vida com o concurso desse grupo sociológico primário configurado na família.

 

*COSTA, Lígia Barros Costa. O Cuidado da Família em Atenção Primária. Fortaleza: Edições UFC, 2008. 14

   



sábado, 21 de agosto de 2021

Para os que amam amar o amor:

BUSCA

Giselda Medeiros


Hoje quero tocar-te,

alcançar as dunas que circundam

a alvura de tuas praias.

Hoje queria ter

dedos insubmissos,

sentinelas destas mãos

que comandam a feroz audácia

de gestos indormidos.

Queria alongar-te pelo dorso manso

a inquietude de desejos secretos

até sentires a quentura gritante

da minha insaciável busca.


Sinto o tempo de amar,

o tempo de entrega.

Entanto, os meus olhos já se enublam

como um sol poente

nas águas sofridas de um rio.

E minha alma, cisne arisco,

já se inclina ante a miragem

do fogo de teus olhos.


Hoje queria tocar-te a superfície,

cadeia enervada de emoções.

Mas, que adianta!

Hoje é apenas um momento...

E o momento é breve como o canto

que te canto.

Depois... Somente a praia submersa

que se inclina

e o sol, pedaços de ânsias afogadas

na mansitude azul das águas.




terça-feira, 3 de agosto de 2021

Graciliano Ramos sob a visão de Túlio Monteiro


A INTERTEXTUALIDADE EM “CAETÉS”, DE GRACILIANO RAMOS – UMA ANÁLISE CRÍTICA DE TÚLIO MONTEIRO


A  fórmula do escritor onisciente e das personagens sem “vida própria” tornou-se desgastada no final do século 19. Este estreitamento formal começou a ser descartado, àquela época, por autores do porte de Dostoievski, Maupassand, Tolstoi e Flaubert, para citar apenas alguns. No Brasil, Machado de Assis, com Dom Casmurro, foi quem primeiro rompeu com os moldes ditados pelas correntes seguidoras do Realismo-Naturalismo, tornando-se ele, o precursor do que viria a ser chamado de moderno romance brasileiro.


Os romances, que até então eram narrados em 3ª pessoa, passaram a ser narrados em 1ª pessoa, dando as suas personagens a possibilidade de adquirirem “pensamentos próprios” e de expressarem seus sentimentos e opiniões sobre o ambiente em que se encontram inseridas. A maioria das obras surgidas durante a corrente Modernista não visava mais somente o mero entretenimento de seus leitores – objetivo maior do romance romântico – nem tampouco buscavam atingir o cunho excessivamente reformista da escola Realista-Naturalista. Objetivavam, sim, o aprofundamento do “eu” humano, dando ao leitor uma visão dura, porém extremamente verdadeira do mundo que o cercava, correspondendo isto à mundividência macroscópica e total do universo que os romancistas de então tinham como meta. Uma constante procura pela verossimilhança e consequentemente uma maior aproximação entre o enredo e a vida real, eram também fatores preponderantes aos que se aventuraram escrever sob a ótica Modernista.


E foi bebendo desta fonte, que Graciliano Ramos escreveu Caetés, em 1933. Romance inaugural de uma carreira literária impecável, há que se perdoar a imaturidade do autor quando da feitura desta obra específica. Livro de linguagem simples, porém enxuta, Caetés nada mais foi que um laboratório, um experimento de Graciliano para seus romances posteriores, estes sim, verdadeiras obras-primas da Literatura brasileira, como bem afirma Antônio Cândido, na introdução de seu Ficção e Confissão: “O romancista doloroso e profundo de São Bernardo e Angústia ainda é, aqui, praticante aliás magistral de fórmulas básicas da técnica do romance”[1].


Pouco afeito que sempre foi às descrições intermináveis, já em Caetés Graciliano Ramos nos dá provas de sua imensa capacidade de muito dizer em um curtíssimo número de linhas. Econômico, sim, mas nem por isso pobre em qualidades literárias, o autor brinda seus leitores com descrições que, apesar de extremamente breves, são profundamente ricas em conteúdo, movimento e plástica. Um excelente exemplo disto é a descrição que o autor faz de Marta Varejão, moça rica e de coração livre para amar, com a qual João Valério, em determinado ponto do romance, pensou em se casar. Note-se o uso sequencial de adjetivos, um artifício muito usado por Graciliano em todos os seus romances para descrever de forma rápida, porém bastante eficiente, as personagens por ele criadas:


“Realmente não era feia, com aquele rostinho moreno, grandes olhos pretos, boca vermelha de beiços carnudos, cabelos tenebrosos, mãos de mulher que vive a rezar. E alta, airosa, simpática, sim senhor, ótima fêmea.” [2]


De excessiva simplicidade só mesmo a estrutura fechada, com começo, meio e fim bem delineados e as passagens desnecessariamente óbvias que vez por outra surgem no corpo de Caetés. Fora isto, o romance inicial de Graciliano já permite ao leitor mais apurado, perceber os primeiros traços da genialidade que este alagoano traria à luz em suas obras posteriores. O livro discorre sobre uma história de amor proibido que se passa na pequena cidade de Palmeira dos Índios, interior do estado de Alagoas, nos anos trinta do século 20. Nela, João Valério, guarda-livros de uma empresa de comércio, apaixona-se por Luísa Teixeira, a jovem esposa de seu chefe, Adrião Teixeira, homem abastado, mas já de idade avançada e saúde um tanto quanto imperfeita. A trama se desenrola sem muitas novidades até seu desfecho final, quando Adrião, ao receber uma carta anônima, descobre ter sido traído por sua mulher e por aquele que tratava como um filho desde que passou a trabalhar em seu comércio. O suicídio do velho e o arrependimento tardio de Luísa, que não mais pretende levar adiante seu relacionamento com João Valério, dão tintas finais ao romance. 


Wilson Martins, na sua excelente apreciação crítica inserida na 13ª edição de Caetés, comenta que Graciliano Ramos, ao escrever este romance, expôs toda a influência absorvida em Eça de Queirós, mais especificamente das leituras que fez d’A Ilustre Casa de Ramires e d’O Primo Basílio. Muito bem observado, mas, sem querer sermos pretensiosos, cremos ter o crítico esquecido de acrescentar ao seu comentário, a gritante semelhança que há entre Caetés e Dom Casmurro, de Machado de Assis. O triângulo amoroso entre João Valério, Luísa e Adrião em nada difere do existente entre Escobar, Capitu e Bentinho, à exceção de que, ao final da história, Escobar não se suicida, nem Luísa dá à luz um filho bastardo. Fica pois, claro, ter Graciliano lido e intertextualizado Machado de Assis, fato que em nada desabona sua obra de estreia no campo da ficção literária.


Contudo, nem só de pequenos defeitos e algumas redundâncias é feito Caetés. Seu corpus já abriga traços da genialidade de Graciliano Ramos que, como já dissemos, só viria à tona em seus futuros romances. Uma prova cabal disso é o metaromance inserido ao longo de toda a trama. O Caetés que João Valério tenta a duras penas terminar, nada mais é que um intratexto do livro que o abriga, levando o leitor mais atento a constantemente formular perguntas do tipo: Seria João Valério o próprio Graciliano? Teria sido Luísa uma grande paixão proibida do autor? É Caetés uma autobiografia? Teria Graciliano Ramos lido A Normalista, de Adolfo Caminha? Quem sabe?! 


Outra prova do excelente uso que o autor faz das técnicas que, em 1969, a crítica búlgaro-francesa Júlia Kristeva, partindo das noções de Dialogismo definidas pelos formalistas russos Mikhail Backtin e Tinianov, fundamentaria e denominaria como Técnicas de Intertextualidade, é a clara alusão que o autor João Valério faz a Iracema, de José de Alencar. Vejamos:


Daí passei para Iracema, da Iracema para o meu romance, que ia naufragando com os restos do bergatim de D. Pêro. Não era mal tentar salvá-lo, agora que, com o armazém fechado, eu podia dispor da tarde inteira. Decidi-me antes que o entusiasmo esfriasse. [3]


E João Valério – suponha-se Graciliano Ramos – vai mais fundo ainda em suas intertextualizações. Tendo pouco conhecimento da história de nossa colonização e sem muita imaginação para compor as personagens de seu romance, João Valério utiliza-se das pessoas que o cercam cotidianamente para gerar os selvagens que habitam seu Caetés:


Continuei suando, escrevi dez tiras salpicadas de maracajás, igaçabas, penas de araras, cestas, redes de caroá, jiraus, cabaças, arcos e tacapes. Dei pedaços de Adrião Teixeira ao pajé: o beiço caído, a perna claudicante, os olhos embaçados; para completá-lo emprestei-lhe as orelhas de padre Atanásio… Sou incapaz de saber o que se passa na alma de um antropófago. Dos indivíduos das minhas relações o que tem parecença moral com o antropófago é o Miranda, mas o Miranda é inteligente, não serve para caeté. Conheço também o Pedro Antônio e o Balbino, índios. Moram aqui ao pé da cidade, na Cafurna, onde aldeia deles. São dois pobres degenerados, bebem como raposa e não comem gente. O que me convinham eram canibais autênticos e disso já não há. Em falta melhor, aproveitei os remanescentes dos brutos da Cafurna, tirei-lhes os farrapos com que se cobrem, embebedei-os, besuntei-os à pressa, agucei-lhes os dentes incisivos. Matei alguns brancos, pendurei-os em galhos de árvores e esfolei-os com a ajuda do Balbino. Depois entreguei-os às velhas, entre as quais meti a D. Engrácia, nua e medonha, toda listrada de preto, os seios bambos, os cabelos em desordem, suja e de pés de pato. [4]


O Caetés de Graciliano Ramos é assim: o romance inaugural de um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Redundante, cercado de influências claras, raso, um tanto instável e escrito por um homem “tão prevenido e mesmo tão desconfiado”, como bem afirmou o poeta Augusto Frederico Schmidt. Porém, se é de bom tom levar-se em conta a imaturidade de qualquer autor que se inicia no mundo literário, o que se dizer do primeiro livro de um escritor do porte de Graciliano Ramos? De qualquer forma, Caetés é uma obra agradável de se ler. De enredo leve e já possuindo pinceladas de uma ampla visão sociológica da realidade e do profundo questionamento crítico-social que caracterizaram e permearam os romances nascidos durante a geração de 30, Caetés é leitura indispensável aos que desejam penetrar no fantástico mundo ficcional do alagoano Graciliano Ramos, a fim de desvendarem um dos mais vastos universos literários de nosso País.


[1] CÂNDIDO. Antônio. Ficção e Confissão. SP, Editora 3D. sem data, p.12.


[2] RAMOS, Graciliano. Caetés. SP, Editora Record, 13ª edição, 1977, p. 36. 


[3] RAMOS, Graciliano. Op. Cit. p. 99. 


[4] RAMOS, Graciliano. Id. Ib. p.100.



BIOGRAFIA


Túlio Monteiro – Escritor, biógrafo, historiador e crítico literário. Graduado em Letras pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Grau de Especialização em Literatura e Investigação Literária, também pela Universidade Federal do Ceará  –  UFC, com a monografia: Intertextualidade e Fluxo da Consciência na Obra de Graciliano Ramos – Orientadora: Professora Doutora Vera Lúcia Albuquerque de Moraes.


Autor dos livros


Agosto em Plenilúnio – Poesias – 1995 –  Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará.


Lopes Filho e a Padaria Espiritual  –  2000  –  Biografia  – Coleção Terra Bárbara  – Edições Demócrito Rocha  – Jornal O Povo.


Sinhá D’Amora, Primeira-Dama das Artes Plásticas do Brasil  –  Biografia  – 2002  – Coleção Terra Bárbara  –  Edições Demócrito Rocha  – Jornal O Povo.


Antologia de Contos Cearenses  – 2004 – Organizador  – Coleção Terra da Luz  – Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará  – UFC, em parceria com a Fundação de Esportes, Cultura e Turismo de Fortaleza  –   FUNCET  – Prefeitura Municipal de Fortaleza  –   Ceará.


Dois dedos de prosa com Graciliano Ramos  –  Contos  –  2006  – Coleção Literatura Hoje  –  Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará  – UFC.


Sonhos e Vitórias – A História de João Gonçalves Primo  – Biografia  – 2007  – Em parceria com o Poeta, Escritor, Historiador e Biógrafo Juarez Leitão  – Premius Editora.


Cajueiro Botador  – Infanto-Juvenil  –  2008  – Coleção Paic  – Secretaria de Educação do do Estado do Ceará   –   SEDUC   –   Governo do Estado do Ceará.


Participação na Coletânea 100 Sonetos de 100 Poetas  – com o soneto E há pó de Estrelas pelas estradas  –  Editada pelo Instituto Horácio Dídimo  –  2019 – Vencedora do Troféu Literatura 2020, da XIII bienal do Livro do Ceará – Prêmio concedido pela ZL Books.


Premiação


Vencedor do 2.º Prêmio Ideal Clube de Literatura – A Hora e a Vez dos Nossos Cronistas – Com a crônica “Dois dedos de prosa com Graciliano Ramos” – Fortaleza – Ceará – 1999.


Assessoria Técnica e Cotejamento do Texto Original


24º Cine Ceará – Prêmio de Melhor Produção Cearense para o curta-metragem “Joaquim Bralhador”, adaptação do conto homônimo do livro Joaquinho Gato, do escritor cearense Juarez Barroso – Dirigido pelo cineasta Márcio Câmara  –  2014.