quarta-feira, 23 de novembro de 2016

ENSAIO SOBRE "OS DIAS ROUBADOS", POR ROSA VIRGÍNIA



Fortaleza, 13 de novembro de 2013
Caro amigo,
Viajante das almas belas e frágeis,
dos corpos esculturais e dos dilacerados,
Saudações.

De um Ensaio Subjetivo para Os Dias Roubados[1]

Chego até você vendo seus olhos de surpresa num riso tímido e feliz. Almejo à Rose e aos seus filhos as melhores horas de todos os dias na graça de tê-lo.
Somente agora pude viajar pelas páginas de Os Dias Roubados. Título bem apropriado ao enredo: roteiro inédito e criativo na arte da escrita e da imagem.
Seu magnífico olhar é lançado com a humildade dos que sofrem. Das mais sinceras confissões que o coração humano pode suportar. Penso e sinto como foi doloroso para o iluminado escritor compor personagens sem luz dentro de si. Tecer um véu de angústia e solidão intensa. Caminhar pelas sombras de solitárias figuras. Sentir a matéria dominar o espírito. Vivenciar o desamparo social e cósmico. Entrelaçar o passado e o futuro sempre perto de cada um de nós.
Prezado amigo, abro uma porta para mim. Preciso de luz para divagar por suas sombras. Um sobrevoo apenas. Mergulhar nelas eu nunca poderia, são suas, construídas no milagre da inventividade. Até porque o cárcere penitenciário é um tema obscuro para mim. Realidade de milhares de presos. Não posso invalidar o desespero sentido dos que nele morreram, sobreviveram e sobrevivem, suas condições sanitárias e assistência médica. Querer imaginá-la é “roubar” a dimensão de suas próprias angústias, uma dor única de cada um.
Querido amigo que muito me honra conhecer, em breve momento trago-lhe, em outro paradigma, minhas reflexões: já morri muitas vezes... E como Monalisa, eu descobri “todos os segredos do túmulo”. Perambulo entre raios de sol e gotas de chuva, num passo lento mais de dor no espírito do que dos anos que de mim se apoderam. O espírito domina a matéria. Neste patamar meu aprisionamento veste-se de azul.
A alma é livre! É policêntrica! Quando é subtraído do corpo o direito de seus desejos, a alma encontra um novo imput de sensibilidade. Novas colinas para a nostalgia. Pequenos grãos de bons sentimentos dão sabor à vida. Isto, porém não evita a dor, mas traz alívio. O sacrifício só é suportável pelo amor e pela fé.
Retomemos o livro. Diga-me quem de nós mortais não teve, em outras circunstâncias, os dias, as horas roubadas? Como diz Negri: “Quando trabalhamos nossa alma se cansa como um corpo, pois não há liberdade suficiente para a alma, assim como não há salário suficiente para o corpo.” O quanto nós não arriscamos em nome de mais um instante de amor? Em nome deste instante,assim como ocorre com muitos, o narrador-personagem de Os Dias Roubados se compromete para além do que gostaria. Ele sabe que o outro (Águida) que se apresenta, não abarca a dor da perda, ao perdê-lo. Sabe que neste amor não havia profundidade cultivada, nem respeito pelos mistérios que se encontram numa relação. Ele sabe deste abismo, mesmo assim se arrisca. Mas se perde nos labirintos da paixão por Danila, que no futuro próximo o abandona à solidão. Ele conhece o desamor. Infelizmente, nunca ouviu Adele em Someone Like You. Inocente ele paga o preço de 15 anos de cárcere sem manifestar raiva de Águida por ter se matado a ela e ao filho. Em seu íntimo ele acolhe a culpa, assim como alguns de nós. Mas em sua razão se revolta porque não é culpado e se consola na parede de Píramo e Tisbe. O amor do prisioneiro sem identidade era apenas humano e o de Águida, o lado escuro do amor, ambos caindo no reino do destino. Lembro Tosca - Puccini “É lua cheia e o perfume noturno das flores, arrebata-me o coração... é profunda a miséria dos profundos amores.” Mas se salva pela própria natureza de escritor que lhe sorri e, exorcizando no escorrer das palavras o tempo que lhe foi roubado, liberta-se dos grilhões da prisão; apesar de sua própria alma continuar encarcerada. Ou seja: ainda que liberto por Ascânio, que lhe revela a atitude trágica de Águida, ele permanece sem encontrar os tesouros da vida. Não compreende que o desejo de amor, que existe em nós, traz também uma ânsia de solidão.
Ouve apenas o grito que lhe persegue, face ao desatino cometido por Águida. E isso o conduz ao desespero. No suicídio contamos com a misericórdia de Deus. Ele não acolheu o sangue derramado de Águida e do suposto filho, por amor. O grito, cada vez maior, pouco a pouco silencia sua psiquê entorpecida.
Nenhuma proximidade com as pessoas devolve-lhe a alegria no coração. Não olhava mais para fora de si mesmo. Não havia mais espaço dentro dele, que morria nas páginas pelas quais vivia envolto na fragilidade da solidão. Ele estava para além do sentimento e da percepção de que é o outro que nos revela.
Quando Felícia, fonte de amparo e beleza, desaparece, o narrador-personagem, no habitual trânsito do pseudodiálogo, revela sua mente ao ser acometido por um pico esquizofrênico (páginas 87 e 88). Seria falta de Lítio ou fragilidade das Patologias do Amor?
Então compreendo porque ele não absorveu o mito clássico de Daphne e Apolo, que fala do sonho da fuga. A moça que vira árvore e seus ramos se bifurcam para o céu, sugerindo vários cominhos para a alma. Ele era sempre dois. Ambos sem nenhum clarão interior, Sem o equilíbrio da mente: sempre é noite!
Na célebre frase que permeia a narrativa e se torna o seu epitáfio, “A noite não tarda, mesmo para os que veneram o sol”, metaforicamente a noite é a sombra que lhe chega e acompanha; o sol, sua miséria humana. Isso enquanto ele não fecha os olhos para sempre e seu corpo passa a repousar sob a fria lápide materializada com a anunciada inscrição.
Quem era Felícia? Para mim, eram-lhe raios de sol, vindos à sua mente, uma Vênus nascida das espumas do mar, a diva do conto “Sobreviventes”, pags. 75 e 76 do livro Mundo dos Vivos[2]. Entre quatro paredes coube o universo. Ela vestia-se de eternidade com trajes de um momento. Poderia ser a princesa Tisbe − a paixão que deu cor às amoras − mostrando-lhe os obstáculos e os desencontros do amor. Poderia ser Daphne convidando-o a brincar, já que a fuga da intimidade tem algo sedutor para quem foge e para quem persegue.
Quem era Aglaís? Uma lembrança! Uma possibilidade!
Percorrido assim um pouco o caminho ontológico da condição humana, proponho que cada pessoa deve encontrar seus próprios mistérios de amor, de esperança, de verdade e de fé. E deste modo a história continua com nossas mentes povoadas de condicionais e dúvidas, pois, quem de nós não traz no coração os “se” e os “talvez” da vida?

Minhas considerações finais na abordagem do caminho.
O narrador-personagem não tem identidade, não possui nome. Mas isso não o nega como pessoa, indivíduo, na sua realidade mental e moral. Não se trata aqui de negar o mal como oposição ao bem, sombra como oposição da luz, pois sabemos que os contrários andam juntos. Nem se trata de dizer que as sombras são somente negativas, reprimidas e ocultas, pois também trazem impulsos criadores. Ele veio da luz, perdeu-se nas profundezas das próprias angústias do seu ego e permaneceu retido em várias prisões enquanto exercia um papel simbiótico com o ato da escrita. Seus relatos nunca saíram da caverna, uma vez que ele nunca mais veria a luz, nem em si, nem no mundo exterior contemplado pela razão, o que não significou a invalidação de sua vida consciente. Seu corpo (discussão para outro momento), enquanto viveu a luz do mundo real e ele, lúcido, dissertou sobre leituras e mitos, descreveu ruas e a cidade, cafés e episódios do dia a dia.
Ao levar consigo para dentro da caverna (cárcere ou manicômio), as experiências e lembranças vão se misturando e se digladiando até matar o outro que existe em si. Estabelece-se em predominância no seu self o lado obscuro da sua personalidade, arquétipo sombrio da sua psiquê. Ele era um prisioneiro de si mesmo. E assim o seu ser vai se apagando até a morte.
O “Relato de Contraponto” surge como ponte do criador, Carlos Vaz, para que possamos compreender a criatura: o seu livro.
Os Dias Roubados, na perspectiva de seu brilhante autor, nos mostra como cada um de nós pode cair em abismos profundos, sombrios e frágeis de nossa psiquê, de nossa alma (anima) ou de nossos destinos.
Deixo como sugestão aos professores de Filosofia, encampar Os Dias Roubados aos estudos acadêmicos das universidades de seus magistérios. E como tal, uma obra apropriada à discussão da nova realidade contemporânea.
Se um inesquecível amigo, filosofo e poeta, funcionário do Banco Central e professor da UECE, vivo estivesse − falo de Nelson Castelo Branco Eulálio Filho, um homem que amava olhar o céu da noite; magrinho, não era alto, usava botas de couro pretas, antigo hábito que trouxe de Brasília − indicaria a ele Os Dias Roubados, um livro admiravelmente concentrado em 95 páginas, um Tratado dos Negros e Vermelhos abismos da Condição Humana, a ser discutido em suas aulas, à perspectiva da luz filosófica.
E ele, como filósofo existencialista, brindaria primeiro ao sabor do velho Teacher’s no barzinho defronte a faculdade.  Depois, afagando a longa barba grisalha, abriria um sorriso e me diria: “Putz grila! Rosinha!”. Nunca uma cadeira vazia significou tanto por tão longo tempo! Lá no céu azul, entre as estrelas ele cintila. Peço licença para um pouco desta carta ser dedicado a ele. Há mais de vinte anos não o vejo, nem mais o verei. ‘‘E nenhum outro cisne branco nadou mais ao meu lado”.
Sinceros agradecimentos pelo convite ao lançamento de sua obra-prima. Quem sabe, num futuro momento, eu lhe chegue como as simpáticas cartas que o personagem sem identidade recebia de seus leitores ao repartirem uma dor consentida.
Meu caro Carlos Vaz, eu fico por aqui compartilhando a famosa solução do poeta Rainer Maria Rilke para os relacionamentos: cada pessoa proteja a solidão da outra. Vou-me, deixando esta carta nas mãos de Hermes, o mensageiro da alma, e de Mercúrio, que presidiu a escrita.
Um afetuoso abraço de
Sol, flores, chuvas, luas e estrelas. A você e aos seus,
Porque assim as grandes almas são feitas.
Rosa Virgínia Carneiro de Castro.




[1]             VAZCONCELOS, Carlos. Os dias roubados. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2013.
[2]             VAZCONCELOS, Carlos. Mundo dos vivos. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008.