segunda-feira, 27 de junho de 2016

NEOLOGIA NECESSÁRIA

NEOLOGIA NECESSÁRIA
Vianney Mesquita*


Pouca necessidade de pensar experimentam aqueles que nunca precisam de palavras novas.

Com assento na sentença epigrafada, de autoria do literato italiano Arturo Graf, de tripla nacionalidade, procedente de alemães, nascido em Atenas e com registro de óbito em Turim (19.01.1848 – 31.05.1913), firo este comentário acerca de um pequeno busílis, por mim topado, sempre que se me depara algum escrito acerca da produção, comercialização, cultivo e movimentação agrícola e econômica do coco-da-baía, principalmente, e outros componentes palmáceos alimentares, amanhados como produtos para circulação no mercado, classificados como pertencentes a um só gênero Coco   catulé, bocaiúva, macaúba, coco-espinho etc  os três derradeiros, notadamente, para natural sustento alimentaranima vili.

Não custa referir, pois é ensejado, ao fato de que o babaçu, que no Nordeste do Brasil é tomado pelo vulgo como “coco-babaçu”, não é parte do gênero Coco, mas pertence ao Orbygnia phalerata, além de constituir bem econômico de regular monta no âmbito do comércio de produtos de procedência agrícola no País.

Mencionados estudos, cujos textos relatoriados são por mim transitados para revista, procedem de programas brasileiros de pós-graduação em Agricultura, stricto sensu (com exame extensivo aos outros dois setores da produção), por exemplo, da Universidade Federal de Viçosa, Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz – ESALQ (USP-Piracicaba), Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA-Mossoró) e, nomeadamente, oriundos do Curso de Economia Rural, da Universidade Federal do Ceará, Campus do Pici, aqui em Fortaleza, um dos melhores programas de pós-láurea em curso no Brasil.

O embaraço reside exatamente em determinar um substantivo para bem retratar, nos relatos de suas investigações, a atividade agrícola-econômica representada pelo Coco nucifera – Linn.1757, uma das dezenas de espécies, da família Arecaceae, inserta no gênero único de taxinomia do coco, o coco-da-baía, principal cultivar dessa classificação, estudado em nossas escolas sob o prisma científico, na conjunção dos vários ramos do disciplinamento ordenado a envolverem seu exame.

Este impedimento não sucede, v.g., com a cultura do café, à qual, sem qualquer percalço de ordem gramatical, linguística e elocutória, se concedeu o nome cafeicultura, com o “i” do meio fazendo a ponte com os dois substantivos para formar o asserto híbrido, a fim de não retratar ideação diferente (café-cultura, estabelecimento onde se toma café e se cultivam temas em geral,café-livraria), bem assim  e, principalmente  com vistas a obedecer às regras de formação vocabular da Língua Portuguesa, cujo trato, por não ser asado o ensejo, não há de vir agora à colação.

A igual acontece com citricultura, relativamente a cítricos (gênero Citrus, família das rutáceas), plantação, cultura e exploração econômica, por exemplo, de laranja e limão. E, assim, com sericicultura – criação do bicho-da-seda (Bombryx mory), beneficiamento, industrialização e comercialização da seda; comolericultura – cultivo e acrescentamentos econômicos de legumes; mangiferacultura – plantação, acompanhamento dos cultivares de manga (Mangica indica); rizicultura ouorizicultura  cultura e economia do arroz (Oriza sativa); e tantas outras ações agroeconômicas de ofício dos três setores produtivos.

O problema não subsistiria, caso a dicção coco não sugerisse, colada à sequente, a formação de expressões cacofônicas, o registo de cacófato - palavra de som feio, desagradável, discorde ou com sentido errado, advinda dos sons de dois termos juntos; e de unidade de ideia obscena, grotesca ou descontextualizada, proveniente da sílaba final de um vocábulo e a inicial do outro. Isto se dá em decurso de um termo seu homógrafo imperfeito, parônimo – cocô – representativo de excremento e coisa de má qualidade.

Desta sorte, convenhamos, é defesa, por absolutamente descabida, a referência a “cococultura” (aqui como a sugestionar um exame parasitológico de material excrementício), ou a “cocoicultura”, cujo “i” certa pessoa já sugeriu como ligação, a fim de reduzir o efeito da cacofonia, no entanto (me parece), ideia desprovida de sucesso. No tentame de aportar a uma solução, outras insinuações vocabulares apareceram, entretanto, deseixadas de ideação lógica e revéis às normas de formação glossológica em Português, como nos casos de coquicultura, ecocucultura – este que me ressoa ainda mais desarrazoado.

Louvado, com efeito, na configuração latina da denominação taxinômica efetivada pelo célebre e operoso naturalista sueco Carlos de Lineu, em 1757 – Coco nucifera – penso haver encontrado uma proposição verossimilhante, consistente em ajuntar, como primeiro elemento do hibridismo ora sugerido, a palavra nucifera, (+ cultura) com esteio nas razões aduzidas na sequência.

Impende-me, então, elucidar, considerando, em primeiro lugar, o fato de que alguém aventou – e os lexicógrafos, inadvertidamente, aceitaram, introduzindo o verbete nas obras de referência – a expressão nucicultura, como representativa da intenção de “cultura de nozes”, todavia procedente apenas das diversas ocorrências de nogueira, como, por exemplo, nogueira-americana ou nogueira-pecã (carya illynoensis), nogueira-brasileira ou nogueira-de-iguape (Aleurites mollucana), nogueira comum (Juglans regia), nogueira-da-austrália ou macadâmia (Macadamia ternifolia) et reliqua.

Conquanto, sob o prisma da evolução histórica, nuci se reporte a nogueira, a inserção definitiva e oficial da unidade de ideianucicultura, especificamente para nogueira, nos dicionários é, sem dúvida, no mínimo, apressada, porquanto nuci, como antepositivo, do Latim, alcança todo fruto com amêndoa, castanha, noz e outros, como o são, exempli gratia, a castanha-de-caju, fruto do cajueiro (Anacardium occidentale) – pegada ao pedicelo comestível (caju), bem como todas as espécies do gêneroCoco (único).

De tal maneira, pelo fato de estar permanentemente sob registro lexicográfico, é interdito se empregar nucicultura, a não ser para o bem originário das diversas espécies dessas árvores produtoras de nozes – ficando de fora coco-da-baía, catulé ou babão, macaúba, macaíba e quaisquer outras palmáceas.

A sugestão, por conseguinte, é a de se cunhar a palavraNUCIFERACULTURA, a fim de descrever, para emprego nos textos de exame científico, a plantação, o cultivo e seus desdobres econômicos – evidentemente com os inerentes nexos sociais – uma vez que a palavra é bem formada, de nuci – envolvendo todo fruto com noz – somada a fera, também Latim, elemento pospositivo, representativo de “que traz”, “conduz” – isto é, feito de nozes.

Malgrado em detrimento das demais espécies do gênero Coco, as quais praticamente não possuem representatividade econômica, sendo parcas, por tal pretexto, referências mais alentadas na literatura da Economia Agrícola, sobra, pois, como alvitre a expressão neológicanuciferacultura, para aplicação em textos de manifestação do saber parcialmente ordenado relativo a coco-da-baía (Coco nucifera).

Minha expectativa é de que, dentro em poucos anos, os glossários das ciências ditas aziendais, ligadas ao ecúmeno rural, incorporem a sugestão, restando, também, a probabilidade de, em poucos decênios, ou mesmo antes, os dicionários oficiais da Língua Portuguesa, circulantes nos nove países lusofônicos, apropriarem a elocução, ao jeito como procederam com relação à unidade de ideia nucicultura, devidamente em si consignada em tempo relativamente curto.

sábado, 25 de junho de 2016

NOTA JORNALÍSTICO-LITERÁRIA



NOVO LIVRO DE VIANNEY MESQUITA

     Estão sob editoração nas oficinas da Expressão Gráfica, casa publicadora de Fortaleza, os originais do vigésimo livro do imortal e titular das Academias Cearenses da Língua Portuguesa e de Literatura e Jornalismo, Vianney Mesquita, o qual ficará pronto ao cabo de trinta dias (25 de julho de 2016), conforme programado pela Editora.
          O volume Esboços e Arquétipos (Língua, Ciência e Literatura) encerra quatro módulos: um de Língua, com três capítulos, outro de Ciência, reunindo, também, três segmentos temáticos; o terceiro tem como recheio assuntos literários – nomeadamente crítica, com doze capítulos; a quarta seção compreende Literatura Passiva, envolvendo apreciações acerca da obra do Escritor, em quatro partes, assinadas pelos escritores coestaduanos Dimas Macedo, Edmar Ribeiro, Batista de Lima e Régis Kennedy G. Cruz.
          As guarnições são da lavra do Prof. Régis Kennedy, o qual abre os comentários com a opinião do Prof. Dr. João Bosco Feitosa, da Universidade Estadual do Ceará, para quem Mesquita, [...] além de um arquiteto a posteriori, é um restaurador de ousadias, um educador de inspirações para quem teima em se comunicar por textos, em meio a contextos que desafiam e expõem nossa emoção e esforços de produzir ciência.
          Régis Kennedy, a seu turno, expressa a ideia de que [...] Aprecio o elo por ele procedido da palavra com a Palavra, agora com este trabalho – Esboços e ArquétiposLíngua, Ciência e Literatura – ao trazer ensaios literários multivariados, porém alargando o temário de sua prosa, para cobrir conceitos, também, de teores da Língua Portuguesa e Filosofia da Ciência [...].
          A capa, elemento que concede o ensejo de se apreciar a arte desemparelhada do professor, escritor, artista plástico e acadêmico cearense Geraldo Jesuino, homenageia três ícones do conhecimento mundial em todos os tempos – Isaac Newton (Ciência), Luiz Vaz de Camões (Língua) e James Joyce (Literatura) - ao lado de seus pares, em alcance intelectivo, constituídos por outro trio de próceres do saber – estes, cearenses:
          - Doutor Manassés Claudino Fonteles, docente da Faculdade de Medicina da UFC, ex-reitor da Universidade Estadual do Ceará e da Universidade Mackenzie, de São Paulo, imortal-titular das Academias Brasileira e Cearense de Medicina, pesquisador de crase internacional e autor de centenas de textos científicos editados em magazines da área em todo o Mundo, no livro representando, com seu par Isaac Newton, o segmento da Ciência, no plano internacional, ali privilegiado;
          - Professor Myrson Melo Lima, da UECE e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará - IFCE, docente dos mais latos conhecimentos e ilimitados recursos no que respeita ao Código Linguistico Lusitano, autor didático de renome (vejam O Essencial do Português - 6. ed., Fortaleza: ABC, 2007), posando com Luiz Vaz de Camões como embaixadores mundiais do módulo Língua, em Esboços e Arquétipos; e
- Escritora Giselda Medeiros, lídima representante, em matéria de qualidade, dos gêneros ficção, poesia e crítica, é componente imortal das Academias Cearenses de Letras e da Língua Portuguesa, das Academias Fortalezense de Letras e de Letras e Artes do Nordeste – ALANE, e da União Brasileira de Trovadores. Registra, entre outros trabalhos publicados, Alma Liberta (1986), Tempo das Esperas (2000), Sob Eros e Thanatos (2002) e Crítica Reunida (2007). É detentora de muitos prêmios literários, pois escritora de fino veio, além de pessoa – a igual dos dois outros cearenses homenageados na capa - de alçada baliza moral e apurado traço amistoso e social. Giselda Madeiros está ao lado do romancista, contista e poeta irlandês (expatriado) James Joyce, investida, no novo trabalho de Mesquita, como representante global da Arte de Escrever.
          O escritor agente destas notas, consoante expresso na quarta capa de Esboços e Arquétipos - Língua, Ciência e Literatura, recebeu da Professora Doutora Joseneide Franklin Cavalcante (in memoriam), o sequente comentário, reproduzido de Repertório Transcrito (MESQUITA, 2000) e respeitante ao trabalho do mesmo autor, sob o titulo de Resgate de Ideias (1996):
          [...] Sobre o Vianney Mesquita escritor, agora mais maduro e profundo, repito minhas palavras de ontem: à semelhança de Michelangello, esculpe cada frase, cada construção. As palavras são seu mármore, a pena (agora, o computador) seu cinzel, a pureza das formas seu modelo, a busca da perfeição sua exigência. Seus escritos são Moisés que adquiriram a própria voz e dele se libertaram, ganharam autonomia. As palavras, artesanalmente trabalhadas, vão ganhando formas, muito suas, e que poderão ser tão variadas quanto ele as queira variar, mantendo, entretanto, a elegância e a pureza de uma língua nacional que, agonizante, deveria suplicar, em favor da sua sobrevivência, por um Vianney Mesquita que já quase não se consegue encontrar [...].
          Esboços e Arquétipos – Língua, Ciência e Literatura (Expressão Gráfica), do escritor palmaciano, fundador e ocupante da Cadeira número 1, da Arcádia Nova daquela Cidade (Palmam qui meruit ferat), terá lançamento festivo em agosto deste ano, nas dependências da Universidade Federal do Ceará.         

domingo, 12 de junho de 2016

HOMENAGEM AOS NAMORADOS



Aos namorados, no seu dia, a homenagem da POESIA, para que, hoje e sempre, vivam felizes, com a doçura do sorriso terno e a energia vivificante do abraço. Parabéns!


CANÇÃO DA ENTREGA
Giselda Medeiros

Deixa-me assim,
pequenina entre teus braços,
nesta paz de pedras adormecidas
a esperar as águas que virão
do teu mar.
Quero esta paz imensa de madrugada
que faz tremer, mais nada.
Depois, o extremo...
Quero o fremir, o grito
que acenderá as luzes de poemas,
lírios despetalados.
Abrir-te-ei minha alma
- a corola -
e nela pousarás qual afoito colibri
na rosa
ao sopro da canção que te escrevi.
Aí, seremos água e fonte
e asas riscando os horizontes.

sábado, 4 de junho de 2016

RUY CÂMARA PRESTA HOMENAGEM PÓSTUMA AO POETA JOSÉ TELLES


ELEGIA PÓSTUMA AO MEU AMIGO, POETA JOSÉ TELES.
Ruy Câmara


“Quantos mistérios se ocultam no ato de morrer?”, indaguei-me na chegada e fiz um gesto solene ao ver o vate de Bitupitá, meu amigo de todas as horas, José Telles, deitado com as pálpebras entreabertas sobre um olhar espiritualizado, movendo apenas os braços e os lábios retorcidos, como se aquela impassividade de cadáver fosse o último recurso para suportar resignadamente os incômodos das dores e das suas consequências.

Nenhuma posição no leito era de conforto, mas a sua consciência parece resistir melhor ao caos do que o corpo em ruínas, uma ruína que aparentemente era restaurada pelo silêncio que embotava todos os olhares.

Apesar de tudo, nosso poeta riu às escâncaras ao ouvir a voz do amigo Carlos Augusto Viana, que acabara de sentar ao lado: Ah se nesse saco de soro tivesse uma meiota de whisky! Em seguida sentou-se e pediu a Aninha uma dose de whisky antes de recitar um trecho de “A Sagração dos Ossos”, uma ode à Ivan Junqueira, quem por força das circunstâncias dorme em sua tumba no Cemitério do Rio de Janeiro. Após um breve silêncio a voz trêmula do Carlos Augusto ecoou no quarto:
Os mortos sentam-se à mesa, mas sem tocar na comida; ora fartos, já não comem / senão côdeas de infinito. Quedam-se esquivos, longínquos / como a escutar o estribilho / do silêncio que desliza / sobre a medula do frio. Sei de mortos que partiram / quase vivos, entre lírios / outros sei que, sibilinos, furtaram-se às despedidas.

Eis que o Vate de Bitupitá arregalou os olhos e disse: Aquilo a que em geral chamamos vida nada tem de comum, mesmo na mais feliz das suas expressões, como essa outra banda da vida que agora conheço e que sofro minuto a minuto, segundo a segundo! Não! Já não há minutos, já não há segundos! O tempo vai desaparecer. É a eternidade que reina, uma eternidade daninha, feita de mistérios! ”
O calor causticante das palavras incandescentes do poeta José Telles invadiram o quarto para apressar a decisão de quem estava prestes a se desvencilhar dos turbilhões caóticos do mundo opaco em que se encontrava, mas que, por uma razão indesvelável, ainda parecia rir das próprias agonias, e também dos nossos olhares ocio¬sos, banhados de zelo, os quais, de tanta comoção, pareciam crispá-lo de energias rígidas, deprimidas, tanto que me perguntei: “De onde ele retira forças para enfrentar as turbulências existenciais e o vazio que supomos conter na alma? Como enfrentar as ameaças alucinantes diante do inexplicável, preso ao corpo que, mesmo pálido e frágil ainda ousa o prazer de um devaneio?
Para quebrar o tédio, peguei o celular e disse: “Ouça esse música amigo Telles.” Nos primeiros acordes percebi que seus sentidos estavam bastante atentos à sintonia do repertório de Denise Emmer, musicada em elegia ao poeta Ivan Junqueira. Magdala, Aninha, Carlos Augusto e Eu, vimos que as notas musicais extraídas com suavidade das mãos delicadas da bela e exímia pianista, agiam sobre o nosso poeta como um bálsamo benigno, retirado de uma fonte inesgotável de amor, de cujo poder pacificador superou muitas vezes o da ingestão dos fármacos e das substâncias alucinógenas para conter suas dores, de cuja sensação de hilaridade produziria nas próximas horas uma felicidade ébria, absoluta, ou algo mais poderoso com o qual a vida ganharia uma conotação egocêntrica, em que todos os esforços só serviriam para acirrar o conflito da desincompatibilização carne-espírito, obviamente depois de sugerir uma paz enlanguescedora, tão frágil quanto o fio de vida que se liga às concepções mais tênues de um mundo incompreensível a um espírito generoso e circunspecto, um espírito duro e manso que permanecia atenazado na fronteira da existência por um sorriso carregado de esperanças, a requerer, de um lado, a compreensão dos amigos, e do outro, a esperada benevolência da morte.

Como nos velhos tempos em que uma ampola de Whisky inebriava os nossos sonhos, naquele quarto sufocante o poeta via os amigos inquietos, aflitos, como se cada um acalantasse o secreto desejo de vê-lo poupado na próxima agonia. Mas, apesar da náusea, ele permanecia atento a tudo, talvez porque não lhe aprazia chegar à beatitude por meios artificiais, como a beatitude dos loucos, que recebem uma calma injetável, de onde eclodem sonhos dantescos, a embriaguez misteriosa, os ideais sem nexo, até o momento em que são libertados dos sonhos sádicos das almas acrisoladas por etéreos soníferos, ou pelos mistérios que virão a possuí-los, como a aurora boreal possui a beleza de si mesma diante do esplendor de um poema contemplativo que surgirá no momento em que tudo parece se extinguir.
Nosso poeta já dormia com as suas glórias, mas no quarto onde a família estava, a noite de vigília seria longa. Quem o visse preso ao leito de morte, entendia a proibição surda que o impedia de comentar sobre o quanto é difícil a hora decisiva. Mas José Telles, um durão-crônico, mantinha-se impávido naquele instante singular, e parecia retirar da música de Denise Emmer a energia amena de uma prece benigna que brotara da alma de Ivan Junqueira, como se brotasse de um Ser majestoso que não cobra servidão aos vencidos no Armagedom.

Como num passo de lucidez, as alegrias que povoaram repentinamente os seus pensamentos, se entrelaçaram com as convicções de que é verdadeiramente amado por todos. Sua ¬consciência parecia inundada de recordações e viajava nas asas dos versos proféticos, acom¬panhando o ritmo harmonioso que invadia seu corpo, palco de uma luta horrenda, extenuada.

Naqueles instantes lentos, os acordes finais de Denise Emmer duraram uma eternidade, ao certo, a categoria mais abrangente da totalidade. “É provável que ele tenha dito para si mesmo: “Enfim, enfim, eu amei a vida e as musas, e por amá-las tanto, tornei-me o mais cortejado dentre os poetas idealinos, ou talvez um dândi sexagenário que, mesmo sofrendo, não posso ignorar o lado doce da vida. ”
Há pouco recebi a triste notícia. Levantei-me, cravei a unha e arranquei o dia 02 de junho de 2016 do calendário, para dizer ao nosso poeta, amigo e irmão de todas as horas:

“Permita uma despedida poética, meu irmão Telles, se é que tu me escutas o íntimo, já que só o íntimo é capaz de traduzir a minha melancolia diante da fatalidade, esse estranho poder que vive a nos contrariar. Como bem dissestes um dia, para espanto dos amantes do delírio, um bom POETA já tem em vista o seu último verso quando escreve a primeira estrofe. Portanto, ele pode começar seu poema pelo fim e trabalhar, quando lhe agradar, em qualquer parte. É, pois, hora de recomeçar uma nova obra pelo fim, talvez o mais lícito e não menos desejado do que um poema perfumado de flores exóticas, por onde a tua essência flui com uma potência misteriosa que se entrecruza com o imperceptível e com o que aparentemente inexiste aos olhos da ciência e da moral. Não sabemos se é essa espécie de instinto poético que nos faz considerar que a sede insaciável de viver é o que nos opõe à morte e ao ignoto.

Seria a finitude uma suposição, o nada absoluto para onde tudo converge, ou um ponto onde se perpetua a imortalidade das essências? Ide, meu poeta José Telles, semeando os teus poemas mais suaves sobre os campos férteis da imortalidade, e quem sabe, com a tua luz benfazeja e generosa, consiga desvelar para todos nós, seus amigos e admiradores, o que verdadeiramente se oculta por detrás desse panorama suprareal que a nossa pobre imaginação não consegue desvelar. Despeço-me com o coração constrito, repetindo o último poema que recitamos juntos, numa noite ébria de desassossego no Ideal Clube:


Baixa uma névoa viscosa / sobre as pálpebras da aurora. / E ali, de pé, sob a estola de um macabro sacerdote, / sagro estes ossos que, póstumos / recusam-se à própria sorte, / como a dizer-me nos olhos: a vida é maior que a morte.