quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Crônica artesanal - Myrson Lima



Crônica artesanal 

           Já eram boas seis horas da tarde quando, enfim, atingimos a fazenda Gameleira com os raios solares esbatendo-se anunciando a hora das Trindades.
                 Urubus, pousados nos sabiás do curral, crocitavam agoureiramente provocando cósmico pavor nos caboclos acocorados no pátio da casa-grande.
                 Encolhidos, encostados uns aos outros, cosiam-se às paredes chãs, enquanto ruminavam cenas prosaicas do dia, forjicavam projetos, profetizavam o tempo e narravam delongadas histórias fantásticas cheias de assombração. Com o barulho do motor, estorceram a vista em direção ao carro.
               No pátio, assomavam imponentes pindobas, ainda verdes, bordeando o grande terreiro, em contraste com a aspereza da paisagem seca, esturricada, sedenta de chuva. Desolação.
               O sol ia celeremente quebrando; ao longe, as rolinhas turturinavam e os marrecos rentes à lagoa quase seca grasnavam na claridade incerta que aos poucos se esgarçava. Ouviam-se distantes e lamuriosos os últimos mugidos do gado magro, ripado pelas costelas, de orelhas mosqueadas, entristecendo mais ainda a paisagem esturricada. As sombras das mangueiras aos poucos se avultavam tisnando a claridade evanescente. Escutavam-se o zizir das cigarras e o barulho infernal de um bando de pássaros retardatários voando apressados em busca de abrigo.
                 Na alcova, uma senhora de meia-idade, de estatura mediana, limpava o sarrento cachimbo sob a luz crua de um singelo candeeiro. O reflexo do fogo vermelho da trempe alongava-se pela cozinha, cintilando nos rostos macerados das comadres, que escrutavam a vida alheia. Pela telha vã, a luz refrangida da lua penetrava indiscreta, alvíssima, caleando as paredes.
               Com as almas já pacificadas, as mulheres, tocadas de ternura, debulhavam o terço, enquanto os homens, sentindo-se a salvo dos pavores crepusculares, espaireciam a tristura bebendo a branquinha à larga agora com histórias jocosas e lascivas.
               Lançamos um olhar largo em volta e nos recolhemos, fatigados, amolentados pelo sono. Prenunciava-se uma noite fresca de lua alta no silêncio amplo do sertão.


6/1/2015