domingo, 4 de janeiro de 2015

VALE A PENA LER: OPINIÃO - ANGELA GUTIÉRREZ - JANEIRO 2015


Um manto sobre a terra

Na antiga cidade, fechada sobre si mesma por altos e espessos muros de pedra, o menino cresce como outros meninos que não conhecem a penúria. Nada lhe falta: nem pão, nem roupa, nem teto, nem mãe, nem pai, nem subida aos montes e nem correria nos campos que bordeiam a cidade. Amável e amado, faz-se rapaz, sente a beleza das flores, a harmonia do canto dos pássaros e a graça das meninas que lhe sorriem.
Um dia, o rapaz vai à guerra e volta ensimesmado e melancólico. Guarda na memória as dores que vira e ouvira em longes terras. Para esquecer essas dores ou para comemorar a vida,  o jovem Bernadone, vestido de veludo, sai com os amigos ao anoitecer, bebe, dança, e volta para casa ao amanhecer. Vem a cavalo, em passo lento, e talvez porque se sinta farto e bem abrigado, causa-lhe espanto entrever, na luz avermelhada do  sol nascente, as silhuetas escuras de figuras encolhidas, encostadas umas às outras e coladas às paredes de sua casa. Desce do cavalo e, pela primeira vez, consegue ouvir o pedido silencioso dos seres desamparados de Assis. Na noite que parecia igual a todas as outras noites, um rapaz, em gesto que repercutiria no seu século e nos que viriam depois, desveste-se de seu próprio manto e com ele cobre o homem que tem frio. Alguns de seus amigos imitam-lhe o gesto e estendem seus mantos sobre outros homens e mulheres e crianças.
Os ouvidos do jovem, antes moucos, e seus olhos, antes cegos, ao sofrimento vizinho, passam a ouvir e a ver a fome, a dor, a vergonha dos irmãos homens e das irmãs mulheres, dos irmãos velhos e das irmãs crianças que vagam na escuridão das noites e na claridade dos dias, invisíveis e inaudíveis para os corações endurecidos das gentes.
E seu canto de amor a todos os irmãos é tão forte que atravessa séculos, quase mil anos, e chega a um homem que se despe do próprio nome e assume o nome do poverello de Assisi para convidar a humanidade a desvestir-se de  preconceitos e ostentação,  e a estender o manto da paz e da justiça sobre todos os que sofrem sem amparo sobre a terra.

                                                           Angela Gutiérrez,
                        Membro da Academia Cearense de Letras e do Instituto do Ceará