domingo, 10 de novembro de 2013

POETA E POETISA - Sânzio de Azevedo


 Não é a primeira vez que abordo esse assunto, mas resolvi retomá-lo depois de uma conversa que tive há algum tempo com o amigo e poeta Jorge Tufic, oportunidade  em que ele me revelou não concordar com o costume, que grassa em nossa imprensa, de se dizer, ao falar de uma mulher que faz versos, tratar-se de “uma poeta”.
Sinésio Cabral, em trabalho de 199l, 1 após lembrar que, em Antenor Nascentes, em Silveira Bueno e na Delta Larousse (e eu acrescentaria Caldas Aulete e Koogan-Houaiss), encontra-se poetisa como feminino de poeta, adverte que em latim temos poeta (poeta) e poetria (poetisa); em francês, poète e poétesse; como, em inglês, poet e  poetess. Ao que eu acrescento, em espanhol, poeta e poetisa; em italiano, poeta e poetessa e, em alemão, Dichter e Dichterin.
 No mesmo trabalho, cita Sinésio Cabral o poeta e crítico Péricles Eugênio da Silva Ramos, o qual considerava Francisca Júlia “talvez o mais característico dos poetas parnasianos do Brasil”, dizendo em seguida que “a poetisa professou a arte pela arte”. 2
 E observa o ensaísta cearense: “Trata-se, aqui, do emprego correto de poetas (a poetisa entre poetas) e de poetisa (feminino de poeta).” 3
 José Peixoto Júnior, escritor cearense radicado em Brasília, em texto publicado numa revista dirigida por Nilto Maciel, ao referir-se a poeta e poetisa, assinalou: “O uso dos dois epítetos nunca arranhou a igualdade reinante no seio do poetismo; jamais limitou o espaço a ‘quantos bebem a água do Parnaso’; entretanto, insinuam o enquadramento do substantivo poeta na classificação morfológica do grupo ‘comum de dois’, submetendo-o ao vexame de ver-se antecedido por forma articular feminina na determinação daquela que verseja, denominando-a de ‘a poeta’.” O mesmo ensaísta sugere que o vocábulo poetisa “deve ter surgido nos estertores do Iluminismo”. 4
 O filólogo conterrâneo José Alves Fernandes me apresentou o único exemplo que vi, fora de nosso tempo, do emprego de poeta com referência a uma mulher. É do século XVII, e diz: “No fim de todas elas (...) vem hua natural de Saxônia chamada Rosuvides estremada na língua Latina & Grega, & Poeta laureada da qual diz Arnoldo (...) que foi admirável assi na prosa, como no verso.” 5
 É o caso de se imaginar o que, em nossos dias, teria levado alguns a substituir poetisa pelo equivalente masculino, tratando embora de mulher. Terá sido a palavra desgastada pela produção de tantas versejadoras sem mérito, ao longo dos anos? Não, esse argumento não procede, se pensarmos no número imenso de homens escrevendo maus poemas no Brasil, ontem, hoje e certamente amanhã...
 Embora continue julgando ser poetisa o feminino legítimo de poeta, como juíza o é de juiz, ou pintora de pintor, ainda admito que alguém se refira a uma autora de poemas chamando-a de poeta, mas desde que seja respeitado o gênero do vocábulo.
 Cecília Meireles, em “Motivo”, disse: “Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta.” Lendo este último verso, não podemos ter certeza quanto ao fato de a autora de  Viagem aceitar a forma feminina “a poeta” (que me parece antiestética), mas, se me é lícita a lembrança de um testemunho oral, contou-me o saudoso escritor Edigar de Alencar que, ao perguntar a Cecília Meireles se ela havia escrito algum poema humorístico, teve dela esta resposta: “ – Eu sou um poeta elegíaco!” Note-se que a escritora disse “um poeta”, e não “uma poeta”.
Curioso constatar que só acontece esse atentado à gramática com o vocábulo poeta. Ninguém diz que a atriz Cacilda Becker foi “uma ator”, ou que a pintora Tarsila do Amaral foi “uma pintor”, o que equivaleria rigorosamente a “uma poeta”...
José Veríssimo, tratando de Júlia Cortines, afirmou, no começo do século XX: “esta poetisa é um poeta tão bom como nossos melhores”. 6 Claro que o crítico usou poeta para generalizar, tanto que o estudo se intitula “Uma poetisa e dois poetas”, pois fala também de Cruz e Sousa e de Luís Guimarães Filho.
 Bem outro é o caso de Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) que, no estudo “Uma poetisa poeta”, datado de 1920, comentando a escassez do trabalho cultural das mulheres (as quais, para ele, “não se distinguem (...) por uma produção satisfatória e nem mesmo apreciável”), conclui o trabalho com esta frase: “A Sra. Maria Eugênia Celso não é uma poetisa, é um poeta, mas de alma profundamente feminina.” 7
 Parece-me estar nessa visão preconceituosa (e machista) a origem da aversão de alguns ao vocábulo poetisa. E ainda assim o crítico respeitou a gramática, pois não escreveu “uma poeta”...
Sirva-me de consolo a leitura de uma poetisa atual, que assume de maneira forte e bela sua condição de mulher que faz versos; trata-se de Elisabeth Veiga, que escreveu um poema intitulado, justamente, “Poetisa”:

Ponho a palavra batom no papel
 -- palavra de carne
 como o beijo é vermelho.

 Ponho a palavra rímel
 e os olhos se fecham sob mel negro
 dessa tinta alerta,
 e o poema se entrega entre teus dedos,
 observa
 o ócio com que o folheias:
 se tivesse pétalas voava
 suicida, de volta para o vidro de perfume.

 Mas o silêncio da rosa
 é perfeito
 quando é só:
 rosa – eternidade na mesa.
 Mas ponho a palavra terra.
 Sou origem.


 Poetisa. Não poeta. 8

(da Academia Cearense de Letras)

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